Sobrinho Neto

Kilbor, um elfo alto e elegante de dezenove anos, dotado de um corpo esguio, bem trabalhado e que, diferente da maioria dos elfos, trazia seus cabelos castanhos cortados curtos, treinava num dos pátios do castelo de Arlon com sua prima Galawel quando um elfo loiro, com um ar arrogante, acompanhado de um homem baixinho com um rosto que lembrava o rosto de um rato, lhe chamou a atenção.

– Meus parabéns, primo, quase me derrotastes de novo – sorriu Gala.

– Quem sabe um dia eu não consigo? – sorriu de volta Kilbor. – Aliás, prima, quem é loiro ali com aquele ar de “quem tem o rei na barriga” e que olha tudo como se estivesse inspecionando tudo?

– Como se estivesse não, ele está inspecionando tudo. Não que ele tenha esse direito, mas está.

– Tá e quem é ele?

– Ele se chama Hikon Krak e é sobrinho neto do rei Tiron.

– Sobrinho neto? Ou seja, filho de um sobrinho do rei?

– Exato.

– Como? Achei que a tua mãe e a tia Rubi fossem as únicas sobrinhas do rei…

– Legalmente sim, mas na verdade não.

– Não entendi…

– Você conhece a história do meu avô, certo? De como ele e o rei Tiron vieram fugindo do norte e aqui fundaram a casa de Fornorimar, certo?

– Claro!

– Pois bem, eles tinham um irmão mais velho, filho do primeiro casamento do pai deles e líder da casa de Krak, a antiga casa da qual eles faziam parte. Durante a guerra que varreu o norte, o irmão deles se voltou contra eles, apoiando o lado contrário ao que eles apoiavam. Revoltados com esse ato, Tiron e Tauron foram embora, mas não sem antes renunciarem aos seus títulos perante a casa de Krak e a romper seus laços com essa. Ao fazer isso, perante aos olhos das tradições élficas, eles deixaram de ser parentes do seu irmão e de seus descentes.

– E o tal Hikon é neto do irmão deles, certo?

– Perfeito.

– Se eles romperam os laços com o “povo do norte”, o que ele faz aqui?

– Bem, alguns séculos depois, com Arlon e Erdan bem estabelecidos, prosperando de vento em popa, o pai dele, que também se chamava Hikon, apareceu aqui com uma mão na frente e a outra atrás, fugindo de uma nova guerra que destruirá os domínios do seu pai e que levara este à morte. Segundo me foi contado, ele chegou aqui, embora coberto de farrapos, de maneira arrogante, exigindo ser tratado como sobrinho do rei.

– Coisa que ele não era mais, certo? – indagou Kilbor enquanto entregava uma toalha para a prima secar o suor.

– Exato. O rei deixou bem claro que nunca viraria as costas para um refugiado, muito menos para um conterrâneo, mas deixou bem claro que era dessa maneira que ele seria tratado: como um refugiado conterrâneo do rei, mas não como sobrinho, pois ele não tinha nenhum sobrinho.

– E ele engoliu isso quieto?

– O que ele podia fazer? O pai dele é que brigara com os tios e era melhor ser um refugiado com um teto e um bom tratamento, do que não ter nem onde dormir. E ele era esperto, foi lentamente se aproximando dos tios, aceitando tarefas e funções que lhe eram delegadas sem nunca reclamar e depois de alguns anos ganhou a confiança ou, ao menos, o respeito do rei Tiron. Meu avô Tauron, por sua vez, nunca fez questão de permitir uma aproximação.

– Com todo o respeito, é bem a cara do seu avô ficar desconfiado…

– Com certeza – riu Gala. – Hikon era bem esperto, mas, ao mesmo tempo, era arrogante e essa mistura não costuma dar muito certo e ele acabou se queimando.

– O que ele aprontou?

– Quando os filhos do rei Tiron morreram, o rei e a rainha ficaram abalados e Hikon aproveitou para ganhar mais poder. Por quase um mês ele assumiu quase o papel de um primeiro ministro e ninguém questionou. Ele, de fato, era bom administrador e os reis tinham o direito de manter um período de luto pela morte dos filhos. Isso lhe fez ganhar mais pontos com os reis, mas ele não soube ser paciente. Havia se passado mais ou menos dois meses desde a morte dos príncipes e os reis se encontravam jantando com ele, com a minha mãe e com o meu avô. O rei Tiron acabara de agradecê-lo por tudo que tinha feito até então e ele achou que era a hora de dar mais um passo e foi aí que ele quebrou a cara…

– Fale, prima! Não me deixe no suspense.

– Ok. Segundo me contou a minha mãe, Hikon se levantou, fez um belo discurso de agradecimento reforçando que o que fizera nada mais era do que um agradecimento pela forma que fora tratado desde que ali chegara. Ainda ressaltou que o nobre sacrifício dos príncipes não podia atrasar o plano de fusão de Arlon e Erdan e que entendia que, agora, mais um fardo havia sido colocado sob as costas da minha mãe. Diante deste quadro, ele, solicitamente, se oferecia para se casar com a minha mãe e assumir a regência dos reinos quando estes se fundissem, deixando assim a minha mãe livre para se dedicar à família e a manter o sangue da família Fornorimar vivo. E que era o destino que indicava que aquelas famílias, que um dia haviam sido uma só, deveriam novamente se unir.

– Putz! A tia não tacou fogo nele?

– Quase, meu avô impediu.

– E o que ocorreu depois?

– Bem, meu tio avô agradeceu ao Hikon pelo “nobre sacrifício” que ele estava disposto a fazer, mas que a minha mãe era uma mulher adulta e que cabia a ela e ao pai dela decidirem o destino dela.

– E ficou por isso mesmo?

– Claro que não. Hikon caiu em desgraca perante meu avô e meu tio avô e demorou muito tempo para ele voltar a gozar da confiança deles.

– Normal. Mas não creio que esse seja o fim da história, né?

– Não, claro que não. Hikon ainda tentou por algum tempo cortejar a minha mãe e depois a tia Rubi quando ela “apareceu” por aqui, por assim dizer, mas o meu avô Tauron sempre teve uma antipatia por ele. Com o tempo, ele desistiu e acabou se casando com uma nobre elfa, filha de um casal de ricos comerciantes de uma cidade no litoral leste do continente. Tiveram somente um filho, que recebeu o nome do pai e acabaram por falecer num naufrágio. Não sem antes encher a cabeça do filho de minhocas. Acreditas que ele já chegou a fazer uma petição para poder usar o nome de Hikon Krak-Fornorimar e o título de príncipe? Aliás, quando a minha mãe estava desaparecida, o pai dele voltou a se oferecer como herdeiro do trono.

Kilbor ia falar mais uma coisa, mas notou que o “assunto da conversa” vinha na direção deles e resolveu se calar.

– Que bom encontra-lhe por aqui, Galawel – disse Hikon. – Fiz um relatório apontando algumas falhas que vi no treinamento da Guarda Real e algumas sugestões de como deveis corrigir. E não precisas agradecer, só cumpri o meu dever como membro da família real. Deverias prestar mais atenção no seu serviço em vez de perder tempo treinando com esse cavalariço.

Diante de tal atitude arrogante e, sabendo que a prima provavelmente nada responderia, Kilbor, normalmente contido e calado, acabou por não se contendo e tomando uma atitude.

– Creio que minha prima esteja grata por sua dedicação em prol do reino, mas, acredite, quando ela quiser um relatório seu, ela pedirá. E, caso não estejas ciente, somente aos membros da família, que não é o seu caso, é reservado o direito de chamá-la pelo nome. Quando dirigires a palavra a ela, faça o favor de chamá-la de “Princesa” ou de “Vossa Alteza”.

– Prima? Quem és tu, frangote, para dizer como eu devo me comportar?

– Eu sou Kilbor Bianchi, filho de Lady Vali Bianchi, ao seu dispor.

– Vali Bianchi? Ah, sim, sim, como foi que Lord Mar’Shell chamou ela no nosso último encontro, Aggar? – falou o elfo, se virando para o baixinho que o acompanhava.

– Creio que “bastarda” foi o termo, milorde – respondeu ele.

– Ah, esse mesmo, “bastarda”. Uma bastarda mãe de um frangote.

– Dobre a sua língua ao falar da minha tia – disse Galawel, finalmente demonstrando irritação. – E Kilbor não é um frangote, ele tem dezenove anos, um a menos apenas do que ti.

– Jura? Não parece, não daria mais do que dezesseis para ele…

Gala fez menção de responder, mas foi contida por um gesto de Kilbor.

– Deixa que eu resolvo, prima. Hikon, sei que se julgas um verdadeiro cavaleiro, certo?

– Não me julgo, eu sou.

– Imagino que sejas um bom espadachim…

– Um dos três melhores do continente.

– Certo, então porque não decidimos isso num duelo não letal de espadas? Ou será que tens medo de me enfrentar?

O elfo analisou Kilbor da cabeça aos pés. Embora ambos fossem elfos, Hikon era uns cinco centímetros mais alto e consideravelmente mais largo.

– Eu sou Hikon Krak, membro da família Fornorimar, não temo nada.

– Certo, certo. Amanhã às 11 horas.

– Amanhã às 11.

Hikon se retirou junto com seu acompanhante, deixando Gala e Kilbor para trás.

– Obrigada por me defender, primo, mas eu sei me virar – sorriu Gala.

– Eu sei que você sabe, é que eu sou um cara “às antigas” e não gosto quando destratam uma mulher na minha frente, principalmente alguém da família. Pode parecer meio antiquado e até meio bobo, mas sou assim.

– Não acho bobo, acho fofo. Continue assim e você logo, logo, vai conquistar aquela moça lá de Erdan. Qual é o nome dela mesmo? Ah, lembrei, Cilla.

– Poxa, eu pedi para a tia não comentar com ninguém…

– Minha mãe só me falou para eu poder te ajudar a se aproximar da moça.

– Tá bom. Aliás, prima, quem era o baixinho com cara de rato que acompanhava o Hikon?

– Cara de rato… Uma boa definição realmente. Aquele é Lord Aggar Ratkin, membro da família Ratkin, uma influente família de comerciantes que tem negócios aqui e também na Grande Planície.

– E porque ele chamou o Hikon de Milorde?

– Existem alguns nobres que apoiam a causa de Hikon, que não veem com bons olhos a minha mãe ter casado com um Bianchi, que se ressentem ainda da guerra que houve entre Arlon e Sudher.

– Mas a guerra foi há um milênio, já é quase um conto de fadas a essa hora. 

– Você esta pensando com uma visão da Terra, primo. Na Terra uma guerra que tenha ocorrido há um milênio realmente virou um “conto de fadas”. Agora, numa terra como esta onde estamos, onde elfos vivem séculos, milênios, bem, mil anos não é tanto assim, não é mesmo?

– Visto por esse lado…

– Exato, muitos nobres influentes lutaram naquela guerra ou perderam parentes próximos nela. É normal que tenham um certo ressentimento. Além disso, meu pai é um mestiço e Hikon é um elfo puro e muitos nobres elfos são preconceituosos a cerca disso. Assim, há um pequeno grupo de nobres elfos e mesmo humanos que gostariam de ver Hikon sentado no trono ou ao menos casado com uma das minhas irmãs para herdar o trono junto dela.

– E seus pais, o que fazem diante disso?

– O mesmo que os reis: ignoram. Meus pais tem o apoio do povo e da maioria dos nobres, principalmente dos nobres humanos e mestiços. E enquanto a maioria estiver ao lado deles, bem, não há o que temer.

– Assim espero.

– Agora, vamos parar de papo, fazer um lanche rápido e voltar aos treinos. Quero vê-lo limpar o chão com o Hikon amanhã.

– Sim senhorita! – riu Kilbor batendo uma continência para a prima.

No dia seguinte, na hora combinada, um pequeno grupo se reunira para assistir o tal duelo. Este se daria no mesmo pátio onde, no dia anterior, Kilbor treinava com Galawel. Era um pátio quadrado, cercado por colunas de mármore e contornado por um corredor de dois andares, que se conectava diretamente com o palácio real. 

Kilbor se encontrava num canto, armado com duas espadas leves de treino, sem fio, enquanto Hikon se encontrava armado com uma espada e um escudo. Ambos usavam coletes de couro reforçado por cima de uma roupa leve.

Galawel se encontrava num canto, junto com alguns oficiais da Guarda Real, quando Lord Aggar se aproximou.

– Preparada para ver seu primo apanhar, “alteza”? – provocou o nobre, usando um tom claramente irônico ao chamá-la de alteza. – Mesmo com a famosa força ampliada de sua família eu acredito que ele não terá chance alguma.

– Meu primo não possui força ampliada, Lord Aggar.

– Então a luta já está decidida – sorriu o baixinho.

– Será mesmo? Sei que és um fã de luta, Lord Aggar, e sei que conheces a famosa técnica de dupla empunhadura de espadas desenvolvida por meu pai e por meu tio Siegfried, certo?

– Claro!

– Então imagino que saibas que fora eles, só duas pessoas dominaram essa técnica: eu e o meu primo Karlon.

– Isso não é nenhum segredo, senhorita.

– É verdade. Acontece que tem duas outras pessoas que estão perto de dominar totalmente essa técnica: meu irmão caçula, Johan, e meu primo Kilbor.

– Seu primo está tão perto assim? – perguntou, preocupado, o nobre.

– Assista e verás.

– Bah, pode ser que isso seja verdade, mas Milorde Hikon não perderá para o filho de uma bastarda…

– Lord Aggar, chame minha tia novamente de bastarda e eu lhe jogarei no calabouço mais sujo da cidade.

– Não ousarias!

– Ela pode não ousar, mas eu com certeza ousaria – disse Lucca, que junto com sua esposa Ardriel, acabara de chegar sem ser notado para assistir a luta.

– Alteza, eu não sabia que o senhor estava por perto… – falou, assustado, o nobre. – Claramente houve um mal entendido, eu nunca ofenderia sua nobre irmã…

– Nos julgas surdos ou idiotas, Lord Aggar? – disse Ardriel. – Ouvimos claramente a ofensa que proferistes à minha cunhada. E se sabes o que é bom para ti, sumirás da minha frente agora.

O banqueiro nada disse e se retirou para o lado oposto do pátio.

– O Nicolas tem que ganhar essa luta para acabar com essa marra do Hikon.

– Seu primo já ganhou essa luta, relaxe filha – comentou Lucca.

– Seu pai está certo, meu amor, a luta já tem um vencedor.

– Tomara, pai, que o senhor esteja certo.

– Pelo jeito, filhota, estás mais nervosa do que eu imaginava com a luta, a ponto de não conseguires “ler” a postura deles. Olhe para os dois atentamente, “leia” o ambiente como lhe ensinei.

Galawel fez como o pai lhe orientara a fazer e realmente a postura de ambos era totalmente diferente. Hikon mandava beijos para as criadas do palácio que, debruçadas da mureta do segundo andar, suspiravam por ele enquanto Kilbor nem piscava, se encontrando atento ao ambiente, estudando tudo com os olhos.

Um oficial do palácio, escolhido para servir de juiz, se aproximou do centro do pátio e convidou os lutadores a fazerem o mesmo.

– Pelo jeito não fugistes, frangote – provocou Hikon.

– Nunca existiu um Bianchi covarde e eu não serei o primeiro. Agora se prepare, pois o frangote irá arrancar suas penas, pavão.

O juiz da luta tratou de afastar os dois antes que o duelo começasse sem que as regras tivessem sido repassadas.

Os dois se afastaram e, ao sinal do juiz, partiram um contra o outro com força e velocidade.

De fato Hikon era bom, talvez não para ser classificado como um dos três melhores do continente, mas era bom, era muito bom.

Mas Kilbor era melhor. Por mais que no início ele parecesse ter alguma dificuldade em lidar com seu adversário, logo ele se adaptou e tomou conta da luta. Seus movimentos eram fluidos, precisos, muitas vezes ele parecia mais valsar do que lutar.

Se Hikon conseguia aparar o golpe de uma de suas espadas, logo a outra estava ali para lhe golpear. Golpe a golpe, investida a investida, Kilbor foi minando a resistência de seu adversário, tendo sempre em mente o que o seu tio um dia o ensinara: se o adversário for mais forte, seja mais rápido e mais esperto e aquele era o caso.

Já o nobre arrogante, acostumado a decidir suas lutas de maneira rápida, se valendo de sua força e de seus braços longos, dava claros sinais de que não tinha condições de sustentar um luta como aquela por muito tempo.

O cansaço pesou e, com uma manobra rápida, Kilbor arremessou a espada do adversário longe. Esse ainda tentou se defender com o escudo, tentando arranjar uma brecha para recuperar sua arma, mas logo o escudo acabou tendo o mesmo destino da espada.

– E então, se rendes? – perguntou Kilbor apontando a ponta de uma das espadas para o pescoço de Hikon que jazia de joelhos diante dele.

– Eu reconheço que perdi.

– Ótimo. Ah, mais uma coisa, algo que me incomoda desde ontem: nunca mais diga que és um membro da casa de Fornorimar. Não tens esse direito.

Kilbor se virou de costas deixando Hikon para trás. Esse, ainda ajoelhado, sussurrou: “Como se o filho de uma bastarda pudesse falar algo sobre sangue”.

Abandonando seu usual autocontrole, Kilbor se voltou rapidamente para o adversário e desferiu um chute bem dado na cara deste, nocauteando-o.

Gala correu até a direção do primo e ergueu o braço direito dele diante de todos, para deixar bem claro quem era o vencedor.

– Sorria e abane para as moças, primo – falou ela enquanto discretamente apontava para as criadas que abanavam para ele e jogavam beijos. – Sei que o seu coração já tem dona, mas não custa ser simpático, né?

– Tá bom, tá bom – respondeu ele, enquanto, sem graça, abanava para as moças. – Aliás, prima, não vai dar problema eu ter chutado aquele pavão?

– Por ele ter ofendido a tua mãe? Nada. Eu e meus pais ouvimos o que ele falou. E ele tem que ser grato que foi você que o acertou e não o meu pai.

Kilbor começou a gargalhar enquanto caminhava até os tios, que o esperavam para dar os parabéns.

Depois daquele dia, o prestígio de Hikon decaiu, principalmente diante da família real enquanto o nome de Kilbor ganhou força diante dos nobres e membros da Guarda Real.

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