A Família do Norte

Parte 4

No dia seguinte, cedo, depois do café da manhã, Lucca, Ardriel, Tauron e Galawel foram conduzidos pelos soldados do Lorde da cidade não para o castelo, mas para uma velha arena circular de gladiadores que ficava numa das pontas da cidade. Ao descerem da carruagem eram esperados por Lorde Olifah e pelo seu filho mais velho, Inus, o que possuía apenas um olho.

– Pelo jeito a tal honra de vocês existe – ironizou Lorde Olifah. – Espero que exista também quando o meu caçula, Babuh, derrotar a minha neta. Aliás, vocês têm certeza de que querem levar esse circo adiante? 

– Absoluta, sei que você está confiante na sua vitória, mas eu não teria tanta certeza – retrucou Lucca.

– Bah, você que sabe e de qualquer maneira alertei o meu menino para não estragar o rosto da sua filha, pode atrapalhar o casamento. Meu criado irá mostrar a vocês o seu vestiário e o seu lugar na arquibancada.

Dito isso, Lorde Olifah, seguido por seu filho e algumas escravas se retirou pegando um corredor lateral. Antes de partir Inus falou algumas palavras para Lucca num idioma que Gala não conhecia. O cavaleiro só não partiu para cima dele pois fora contido por seu sogro.

– Mãe, o que exatamente esse caolho que se intitula meu tio disse para o meu pai? Afinal eu não compreendo esse dialeto do norte que eles usaram…

– Basicamente ele disse que acha a ideia do pai dele de usá-la como moeda de pagamento estupida e que adoraria tê-la no harém dele e usar o pênis dele para inflar os seus seios e seu abdômen. Quer dizer ele não disse exatamente pênis, mas eu me recuso a traduzir o que ele disse.

– Usar para inflar… Ah, entendi. E já entendi a irritação do papai. E o que o meu pai respondeu de volta?

– Que se ele chegasse perto de ti o teu pai enfiaria o pé dele tão fundo na bunda do seu “tio” que ele o usaria de sapato. Claro que o seu pai falou isso num sentido figurado, ele nunca faria algo assim porque fatalmente o mataria e o seu pai não mata. Mas claro, eu não me importaria em tacar fogo no “lulu” dele caso ele repita essa gracinha. Agora deixe isso para lá e se concentre em ganhar a sua luta.

– Claro, mãe, não se preocupe, eu não pretendo perder em hipótese alguma.

O criado os levou até o suposto vestiário, que na verdade não passava de uma sala suja, úmida, fedendo à mofo e com um banco de madeira visivelmente podre encostado num canto. Ardriel e o seu pai seguiram este até à arquibancada enquanto Lucca ficou para trás para ajudar a filha a vestir a armadura que ela ia usar.

– Filha, tem certeza de que não queres utilizar a armadura que o seu tio Sieg lhe deu? – perguntou Lucca

– Pai, nós dois sabemos que aquela armadura é quase indestrutível, não seria justo.

– Você sabe que eles provavelmente não vão jogar limpo.

– Eu sei e não me importo, eu quero lutar de maneira limpa e vencer sem nenhuma ajuda, mesmo que tiver que lidar com a trapaça deles. Você realmente acha que eu vou perder para aquela coisa que se autoproclama meu tio?

– Essa é a minha filhota. E não, não acho.

– Pai?

– Sim?

– Minha “outra mãe” não parecia nada com os irmãos dela, né?

– Não deveria me dar ao trabalho de responder, mas, não, não parecia, pelo contrário, to começando a achar que ela foi adotada – riu Lucca. – Agora menos besteira e se concentre na luta, filhota.

O cavaleiro deu um beijo na testa da filha e foi até onde sua esposa e seu sogro o esperavam enquanto está seguiu pelo corredor que à levaria até o centro da arena.

– Você não falou com ela, não é mesmo, amor? – disse Ardriel ao ver o marido chegar.

– Sobre plano de tirá-la aqui aconteça o que acontecer nesse duelo? Não, não falei, Gala ficaria meio puta com essa nossa decisão, achando que a gente não confia na vitória dela e ela precisa se concentrar.

– Tu fizeste bem, meu genro.

– É a melhor coisa a se fazer, meu sogro. Agora eu recomendo que você aproveite que todos estão olhando para a arena para “sair à francesa” e pôr o seu plano em prática. E não se preocupe, deixaremos um holograma aqui, sentado na arquibancada para não notarem a sua ausência.

Ao chegar na área de luta da arena Gala viu que o seu tio, já de armadura, estava esperando-a no centro desta. A única coisa que fazia Babuh lembrar remotamente um elfo eram as orelhas pontudas. Ele tinha um cabelo loiro seboso ralo mal distribuído na cabeça, um queixo quadrado com uma papada dupla, uma boca levemente torta com o canino esquerdo insistindo em ficar para fora, uma corcunda imensa nas costas, um braço direito visivelmente mais desenvolvido que o esquerdo (não que este fosse atrofiado ou fino, pelo contrário, possuía músculos bem trabalhados) e pernas curtas, mas grossas e fortes.  E, por fim, o que ele não possuía de cabelo na cabeça possuía nos braços.

Atendendo ao sinal do juiz, um soldado do próprio lorde da cidade, Gala caminhou até o exato centro da arena, junto do seu adversário e ficou escutando as regras do duelo. A elfa não pode deixar de notar que o seu adversário, diferente dela, usava uma espada com fio.

– Achei que fosse um duelo usando armas de treinamento – falou Galawel.

– E é, só que aqui nós não usamos essa frescura de espada sem fio nos treinos – retrucou Babuh. – Aliás, esse duelo não deveria estar acontecendo. Se você é tão educada quando faz parecer, deveria assumir logo a derrota em respeito ao fato de que eu sou seu tio.

– Eu tenho dois tios e duas tias e nenhum deles é um sapo deformado como você e qualquer um deles facilmente limparia o chão com a sua bunda, como eu mesma estou prestes a fazer.

– Palavras fortes para uma garota…

Lucca e Ardriel assistiam tudo debruçados na mureta da arquibancada da arena, no local que lhes havia sido indicado, mas, graças à uma técnica especial, conseguiam ouvir tudo o que se falava na arena.

– “Palavras fortes para uma garota” … Sabe, amor, foi bom a sua irmã não ter vindo para cá e sim ido ajudar o seu pai pois à essa hora a gente estaria tendo que conter a Rubi para ela não pular na arena e comer ele de porrada.

– É verdade, já a sua irmã, se estivesse aqui, provavelmente estaria mirando uma flecha na virilha dele.

– Que virilha o que, a Lelé estaria mirando no saco mesmo. Agora vamos nos concentrar que a luta vai começar e algo me diz que ela vai ser rápida.

– Tomara, meu amor, tomara.

Enquanto conversavam o casal notou a chegada de uma pessoa familiar, o Marquês de Dumhar.

– Bom dia, altezas, majestade, sim eu já sei a verdade e não se preocupem, não me ofendi com vossa mentira, diante de toda a situação, toda cautela é necessária.

– Bom dia Marquês, pelo jeito de fato o senhor é bem-informado – respondeu Ardriel.

– Bem, alteza, eu gosto de saber de tudo que ocorre na minha cidade, mas neste caso em específico eu sou uma parte interessada.

– Como assim? – perguntou Lucca.

– Lorde Olifah não disse? Eu sou o noivo de vossa filha, quer dizer, se ela perder o duelo.

Nisso Lucca e Ardriel olharam sério para o Marquês. Esse engoliu a seco, sem graça, e falou:

– Por favor, não me levem à mal altezas, se eu soubesse que a noiva a mim prometida pelo Lorde Olifah era a vossa filha eu nunca teria aceitado o acordo.

– Acordo? – perguntou Ardriel.

– Sim, há alguns meses o Lorde Olifah me procurou, falido, para variar, e querendo um empréstimo de dinheiro. Ele sabia que não podia aumentar mais os impostos da cidade para sustentar suas farras sob risco de quebrar esta ou criar uma revolta popular e nem tão pouco tinha condições de arrancar o dinheiro de mim com um dos seus filhos sugeriu então ele me propôs um acordo: se ele não me pagasse o empréstimo dentro do tempo certo ele me daria em casamento uma das suas herdeiras e faria da criança que viria a gerar com ela o seu herdeiro direto no governo da cidade. Agora me respondam, existe alguma chance de vossa filha perder esse duelo, altezas? Não que eu torça para isso, pelo contrário.

– Ué, Marquês, achei que estivesses do lado do Lord Olifah – retrucou Lucca – e, respondendo à sua pergunta, nenhuma se a luta for limpa.

– Assim espero.

– Definitivamente não estou entendendo de que lado o senhor está, Marquês.

– Estou do meu lado, alteza. Peço que vós não fiqueis ofendidos com o que eu vou dizer agora, altezas – e nisso o marquês falou olhando sério para Lucca e Ardriel – mas entre a vossa filha e a cidade de Vallah, eu fico com a segunda. Vossa filha é linda, inteligente, atlética, corajosa, tem todas as qualidades que eu admiro numa mulher e, para completar, não que isso seja importante, ela tem sangue nobre e isso calaria todos os boatos de eu ter comprado o meu título de nobre. Eu adoraria casar com a vossa filha se essa fosse a vontade dela, o que não é o caso. Meu acordo com o Lord Olifah é claro: ou ele me entrega a mão de uma das suas sementes, usando o termo odioso que ele costuma usar, ou o governo de Vallah. E bem, mais de 50% da renda da cidade e dos empregos desta dependem, direta ou indiretamente da minha companhia de comércio e da guilda dos comerciantes, que eu comando, ou seja, na prática eu já praticamente divido o controle da cidade com Lord Olifah e, com esse acordo, eu terei o direito legítimo de governar Vallah e restaurar ela às glórias do passado.

– Não sei se posso concordar com esse tipo de acordo, que envolve um casamento forçado, mas posso adiantar que o senhor já pode se considerar o novo governante da cidade, Marquês, pois esse casamento não acontecerá, em hipótese alguma e agora, se me dá licença, eu pretendo prestar atenção na luta da minha filha – falou Lucca.

De fato, o duelo da jovem já começara e, para o espanto dela, Babuh se mostrava um adversário difícil, ele não era só “garganta”, de fato sabia lutar. Lutava de uma maneira bruta, com pouca técnica, mas ainda assim o suficiente para fazê-la suar.

Babuh, já respirando com alguma dificuldade, ergueu sua pesada espada e se preparou para dar um golpe final em Gala que aparou o golpe com a própria espada demonstrando uma facilidade que espantou o guerreiro.

– Como é possível? Você é só uma mulher…

– Eu não sou “só uma mulher”, eu sou uma Fornorimar-Bianchi! Do meu pai eu herdei a força, com a minha mãe eu aprendi o que é liderar, a responsabilidade de um governante e com os dois eu aprendi o que é honra, coragem e aprendi a nunca desistir!

Gala empurrou a espada dele para cima com tal força que esta voou longe e ele caiu de bunda sentado no chão. A elfa apontou a espada para ele e perguntou:

– Você desiste?

– Nunca!

Sem dar tempo para o adversário levantar Gala acertou um potente chute no rosto dele, que arrancou dois dentes e o colocou à nocaute.

A jovem não teve tempo de comemorar a sua vitória pois, quando estava prestes à entrar no corredor que levaria para fora da arena, se viu cercada por um pelotão de soldados comandados por seu outro “tio”, Inus, que era quase igual ao irmão caçula, apenas tendo um tapa-olho e fato dos dois braços serem de igual tamanho para diferencia-lo.

– Onde você pensa que vai, mocinha? Você tem um casamento a comparecer.

– Eu vou embora, esse é o acordo.

– Acordo que você fez com o meu pai, não comigo. Agora é bom você obedecer, detestaria fazer você casar machucada ou mesmo danificar esse rostinho lindo. Sabe, você é muito parecida com a sua mãe, até nesse jeito arrogante de achar que mulheres tem os mesmos direitos que os homens. Guard…

Inus não conseguiu terminar a frase pois Lucca, que acompanhado pela esposa, havia corrido para o local, se aproximou por trás e lentamente começou a estrangulá-lo enquanto o erguia pelo pescoço.

– Largue meu irmão e meus soldados os deixarão ir – falou Babuh, que se encontrava apoiado num servo. – Você pode não acreditar, “alteza”, mas eu tenho palavra e meu pai também. E eu não vou permitir que ela seja quebrada na frente dos nossos convidados.

Lucca jogou Inus no chão com a facilidade de quem joga um boneco de pano, e junto da esposa e da filha tomou o rumo do corredor. Ele parou na entrada deste, virou-se uma última vez para trás e falou:

– É bom vocês terem realmente palavra ou vão descobrir que eu posso ser seu pior pesadelo. E Inus, se você aparecer novamente na minha frente ou mesmo apenas ousar ofender a memória da sua irmã, é bom se preparar para viver o resto da vida cego pois eu vou terminar o serviço que o meu irmão começou.

Dito isso o cavaleiro deu tal soco na parede de pedra da entrada do corredor que um buraco pouco maior que o seu punho se formou. Era o jeito dele de dizer que não estava brincando em hipótese alguma.

Os três apertaram o passo e começaram a correr para fora da arena.

– Pai, cadê o vovô? Eu notei que já durante o duelo ele tinha sido substituído por um holograma…

– Digamos que ele é outro motivo que está nos levando a correr para fora daqui, ele foi resolver uma injustiça por assim dizer e deduzo que sua “outra família” não ficará muito feliz ao descobrir.

– Ah, tá mas não deixaram ele ir sozinho não, né?

– Não, teu tio Sieg e tua tia Rubi estão com ele. Aliás, amor, eu senti um cheiro de queimado vindo da arena, você aprontou algo, né?

– Você não viu, pai? A mãe tacou fogo nas calças do Inus com ele dentro, obviamente.

– Desculpa, querido, mas você deu o seu recado, eu precisava dar o meu – explicou a princesa, sorrindo.

Eles já estavam quase fora da arena quando foram abordados por um Lorde Olifah que, claramente, estava fora do seu juízo normal. O velho elfo estava com os olhos saltados, andando de joelho e arrastando um vestido de noiva na mão.

– Minha netinha querida, você precisa ajudar o vovô, o vovô vai ficar pobre se não tiver casamento – disse ele, se agarrando na perna de Gala.

A elfa sacudiu a perna para se soltar e retrucou:

– Case-se você, se é tão importante assim, mas eu não tenho nada a ver com isso.

– Eu? Casar? É uma ótima ideia, com maquiagem e uma peruca ele não vai notar a diferença e sempre podemos adotar crianças – gargalhou o velho, de maneira insana enquanto saia correndo com o vestido e já colocando o véu de noiva na cabeça.

Os três embarcaram no mesmo coche que haviam usado para vir para a cidade e que os estava esperando na saída da arena. Os soldados de Erdan, que haviam viajado com eles para a cidade, atendendo à uma ordem do seu rei, já haviam pago a conta da estalagem e os esperavam prontos para ir embora de Vallah assim que a luta acabasse.

Uma semana depois Galawel se encontrava distraída, vendo o pôr do sol numa das varandas do castelo de Arlon e não reparou sua mãe chegar.

– Uma moeda pelos seus pensamentos, filha – falou Ardriel. – Me conte, o que preocupa você?

– Preocupar? Nada não, mãe.

– Te conheço bem, minha filha, e você faz a mesma cara que o seu pai costuma fazer. Vamos, como diria o seu pai, desembucha.

– Eu estava pensando em tudo que aconteceu lá no norte… Será que eu agi certo em sair daquele jeito?

– Você não te pensando deveria ter se casado, não é mesmo?

– Não, claro que não, mas sei lá, ficado lá para ajudar. Lorde Olifah me pareceu bem sincero e bem desesperado.

– Está aí mais uma coisa que você puxou do seu pai: o hábito de querer carregar o problema do mundo nas costas. Filha, nada que esteja acontecendo lá é sua culpa. Olifah só está colhendo o que plantou.

– Eu sei, mas não é com ele ou com os meus “tios” que estou preocupada mas com o povo da cidade…

Ardriel abraçou a filha.

– Eu amo esse seu coração de ouro, filha. E não se preocupe, meu pai e meu tio já mandaram espiões para lá para monitorar tudo.

– Sério?

– Por que eu mentiria para você? Eles podem não ter o hábito de carregar os problemas do mundo nas costas, mas nunca foram virar as costas para inocentes correndo risco. Alem disso, o pai deles, meu avô nasceu lá, então digamos que eles também possuem um motivo à mais para ajudar, um motivo meramente emocional, mas um motivo.

– Sabendo isso acho que posso relaxar um pouco.

– Fico feliz em ouvir isso, filha. Agora vamos entrar, está começando a ficar frio aqui e embora o frio não me incomode não quero vê-la pegando um resfriado.

Galawel acompanhou a sua mãe para dentro se sentindo mais leve, como se um peso houvesse sido tirado das suas costas.

Fim

Extra:

Uma pequena ilustração dos “tios” da Gala, feita no programa “Fábrica de Heróis” pode ser acessada clicando aqui

Retornar ao menuRetornar à Parte 3