(Texto Completo)
1-
Andando pela sala de casa, em círculos, Lucca estava visivelmente incomodado.
– Amor, você quer se acalmar um pouco? – ponderou Ardriel. – Nós dois concordamos em permitir que a Mariana trabalhasse como modelo, desde que ela andasse na linha. E ela tem andado. A nossa filha tem quinze anos, é uma moça linda, tem mais é que aproveitar a beleza dela.
– Sim, concordamos, mas ela tinha que desfilar logo pela “By P”? – retrucou Lucca.
– E o que tem de errado com a “By P”, pai? – perguntou Mariana, que havia entrado na sala sem ser notada.
E era difícil Mariana não ser notada, afinal, naquele momento, ela era uma moça alta, com longas pernas, pele bronzeada, cabelo castanho escuro, ondulado, cortado na altura dos ombros, com algumas mechas douradas na frente. Quem a visse, não acharia que era uma uma menina de quinze anos mas uma mulher de vinte, vinte e um anos.
– Fora ela ser controlada por Paulus Veerbochen? – disse Lucca.
– E?
– E você não está lembrada, filha, de quem Paulus foi no passado? A amazona Morte…
– E dai que ele foi um super vilão ou uma super vilã, sei lá, no passado, pai? Ele agora é um estilista famoso, super elogiado na mídia por apoiar vários projetos de caridade e ele me escolheu pessoalmente. E ele sabe que sou sua filha, pai e deixou as rivalidades de lado. Por que o senhor não tenta fazer o mesmo?
– Mari esta certa, amor. Além disso, como a Mari é menor de idade, nós ganhamos passes para os bastidores. Assim, poderás ficar de olho na sua filha o tempo que quiser.
– Tá bom, ta bom, vocês me convenceram.
– Alias, pai, sei que a pergunta vai soar estranha, pois nunca me interesso pelo passado heroico da família mas que fim levou os outros cavaleiros do apocalipse que o senhor enfrentou?
– É estranho mesmo, filha, mas ao mesmo tempo gosto de vê-la se interessando pelo meu passado, que não deixa de ser seu também. Tales, o primeiro cavaleiro Peste voltou para a Terra, teve a memória apagada, se livrou da dependência química e hoje é o diretor pedagógico da escola onde você estuda. O segundo eu não sei quem era e não sei o que foi feito dele. Paulus, a Morte, bem, é estilista. Rai, que era a Fome, é secretaria e braço direito do Paulus, inclusive, oficialmente, ele é o pai do filho dela, digo oficialmente porque, sabe como é, ele nunca gostou da fruta.
– Sei lá, pai, como costuma dizer o vovô, numa noite de tempestade, tudo pode rolar. E o Marco, que era o Guerra, o que houve com ele?
– Ele morreu e por minha culpa.
– Por sua culpa, pai? Impossível.
– Marco entrou em depressão, filha, e se suicidou. E, em parte, por culpa minha sim. Quando nós os derrotamos de novo, quando salvamos a sua mãe, não tivemos a preocupação de apagar a memória deles. Pelo contrário, eu até fui contra isso, afirmando que isso era uma violação inaceitável da pessoa.
– Normal, afinal tinham apagado sua memória, pai e você sabia o quanto era ruim isso. Mas o que isso tem a ver com a depressão dele?
– Parece que o Marco, diferente da Rai e do Paulus, nunca se adaptou à uma vida normal, sem poderes, onde ele fosse apenas mais um. E isso o levou a entrar em depressão. E quando a Rai me procurou, eu virei as costas para ele.
– Normal, amor, afinal ela lhe procurou pedindo que você devolvesse os poderes dele, total ou parcialmente – interveio Ardriel. – Ela nunca nos contou que ele estava tão mal. E como a família dele tão pouco tocava no assunto, achando que tudo que ele falava era delírios, achando que ele tinha enlouquecido, não tinha como você adivinhar. Se a Rai pelo menos tivesse dito a verdade sobre a depressão dele, poderíamos pelo menos ter apagado as memórias dele, evitando assim a causa maior de sua depressão.
– Isso é verdade, a mãe tá certa, pai. O senhor não tem como saber de tudo sempre. Ninguém espera que o senhor saiba, afinal o senhor não é um deus. E, sinceramente, pelo que contam dele, ele não valia nada mesmo. Como diz a vovó, ficar falando disso é gastar vela boa com defunto ruim.
– Sua avó as vezes é meio dura, Mari e eu me sinto um pouco culpado sim afinal um dia nós fomos amigos, amigos de infância. Agora vai se arrumar antes que nos atrasemos para a sua estreia na passarela.
Mais tarde, já no local onde aconteceria o desfile, Mariana já se encontrava pronta para a sua estreia e conversava com um modelo bonito, alto, de cabelos escuros curtos nos bastidores da passarela quando o dono da grife, Paulus, se aproximou. Para ela era difícil crer que Paulus era um ano mais novo que o seu pai. Ele era magro, comprido, com um queixo anguloso e a sua cara maquiada e seu cabelo pintado tentavam inutilmente disfarçar marcas de envelhecimento.
– Olá Mariana. Pelo visto já conhecestes meu sobrinho Toni – sorriu o estilista.
– Eu estava mostrando tudo para ela, titio.
– Sei, lhe conheço bem, Toni. Agora recomendo que você recolha as suas garras pois a moça ao seu lado tem apenas quinze anos e o camarada de cara emburrada que está vindo ali é o pai dela.
De fato, da porta de acesso aos bastidores estava vindo Lucca, com cara de poucos amigos, e Ardriel, de braços dados. Ao ver Lucca, que era um quarentão de um metro e oitenta e cinco, largo e com braços que, apesar da roupa, se via claramente que eram trabalhados, Toni engoliu a seco.
– É, bem, tio, Mari, se me dão licença, tenho que me aprontar. Aliás, por curiosamente, Mari, quem é aquela gata junto do seu pai, sua irmã?
– Não, minha mãe.
– Mãe?! Nossa….
– Toni…. – falou Paulus num tom sério.
– Fui!
O rapaz saiu correndo. O estilista, por sua vez, arrumou a franja do cabelo, preparou o seu melhor sorriso, o mesmo que usava em suas entrevistas para TV e foi até a direção dos antigos rivais.
– Luquinha, Princesa, que bom que deixaram as rivalidades de lado e vieram à estreia da sua filha. Ela é um verdadeiro diamante bruto, mas com uma mãe tão bonita, não tinha como não sair linda. Aliás, princesa, precisa me passar suas dicas de beleza, viu?
– Gentileza, sua, Paulus, eu me cuido quando da tempo, afinal ser mãe, esposa e princesa é muita tarefa para uma pessoa só. E pode me chamar apenas de Ardriel.
– A senhora é que sabe. E Luquinha, se solte, curta o desfile, aproveite tudo. Saiba que de minha parte não há mais ressentimentos.
– Sério? – perguntou Lucca desconfiado.
– Sério. Eu entendo sua posição com relação ao Marco. E sei que se você soubesse da depressão dele teria dado um jeito de ajudar. É bem do seu feitio. Mas ele não quis que você soubesse. Escondeu até de mim isso.
– Isso eu nunca entendi – retrucou Lucca. – Sempre que achei que vocês fossem unha e carne.
– E éramos. Agora me deixe responder com uma pergunta: se você estivesse no lugar da Rai, você respeitaria o desejo dele ou contaria a verdade para ajudá-lo, a despeito do que ele pediu?
– Contaria a verdade, ué. E ele que brigasse comigo depois.
– Bem, Luquinha, eu penso o mesmo. Eu teria te contado a verdade. Mas a Rai sempre foi cegamente fiel a ele, fazer o que?
– Mas porque esconder a verdade do meu marido? – disse Ardriel. – Orgulho?
– Exatamente. Marco sempre viu o seu marido como o único à altura dele, o único que podia ser um rival decente. Sabe como é, ele sempre teve sonhos de grandeza. E ser ajudado pelo rival na sua hora de maior fragilidade, bem, para ele era melhor morrer.
– E por isso a Rai me culpa até hoje. E ela não está errada. Se eu tivesse dado um jeito de apagar as memórias de vocês, como fizemos da outra vez, nada disso teria ocorrido.
– Será, Luquinha? Você conseguiu quebrar o feitiço que colocaram em você. E eu entendo seus motivos. Você se sentiu estuprado mentalmente e não quis fazer ninguém passar por isso, algo bem nobre, bem ao seu estilo. Mas tem outro motivo, inconsciente do qual ninguém nunca se atinou.
– Qual? – espantou-se Lucca.
– Punição. Não há um dia do qual não me lembro das coisas terríveis que fizemos lá. E não sinto orgulho. Prefiro pensar que era influência do Darklit, que eu não sou tão mal assim. Acredite, não doou dinheiro aos pobres porque sou “bonzinho” mas como forma de aplacar minha consciência.
Antes que mais alguém falasse alguma coisa, um garoto de uns cinco ou seis anos saiu correndo do vestiário feminino rindo e com calcinhas nas mãos com um funcionário que gritava para “pegarem aquela peste” correndo atrás. Ao ver Paulus, o garoto correu para o colo dele.
– Meu filho, o que você aprontou agora?
– Ué, pai, você sempre disse que homens tem que ficar espiando as calcinhas das mulheres, então eu fui lá espiar.
– Espiar meu filho, não roubar – gargalhou Paulus.
Rai apareceu logo depois. Ela era dois anos mais nova que Lucca e um ano mais nova do que Paulus e, diferente deste, estava extremamente bem conservada. Sem sequer dirigir a palavra à Lucca ou Ardriel, ela pegou o filho no colo e foi embora.
– Desculpe a Raimunda. Eu deixei tudo para trás, ela não. Ela inclusive era contra a Mariana estar aqui – disse Paulus.
– E porque então você contratou nossa filha? – perguntou Ardriel.
– Porque, como eu já disse, ela é um diamante bruto e eu adoro diamantes.
– Paulus, desculpe, mas posso fazer uma pergunta?
– Claro, alteza.
– Deixe o alteza de lado, por favor. O garoto é seu filho mesmo?
– O Marquinho? Sim, o nome dele é Marco. Eu achei de mau agouro, mas a Rai insistiu no nome. E ele é meu filho sim, “sangue do meu sangue” como os bregas gostam de falar. E, diferente do pai, vai ser um macho que vai me encher de netos. Eu amo quem sou, mas devo reconhecer que ser hetero é mais fácil, não tem que lidar com preconceitos tolos.
– Qualquer tipo de preconceito é inaceitável, mas entendo o seu ponto de vista. Aliás, foi inseminação artificial, né? – comentou Lucca.
– Nã-na-ni-na-não, método 100% natural. Digamos que estou numa fase em que “eu gosto de meninos e de meninas também”, se é que me entendem. Se quiseres os detalhes….
– Me poupe dos detalhes sórdidos….. – disse Lucca.
O estilista começou a gargalhar.
– Luquinha, Luquinha, você me fez lembrar dos tempos de colégio, quando éramos mais inocentes e mais felizes. Agora, por favor, queiram tomar seus lugares, o desfile vai começar.
Lucca e Ardriel foram para os lugares reservados para eles pela produção do evento, de fato lugares bem bons, junto da passarela. E foi com orgulho que viram a filha do meio brilhar nesta e ser aplaudida por todos apesar de ser uma modelo estreante.
Depois do desfile foram até os bastidores buscar a filha e cumprimentar Paulus quando uma nuvem negra envolveu eles dois, sua filha, o estilista e também Rai.
2-
Os cinco se viram de repente num lugar todo negro onde a única luz provinha de uma chama criada por Ardriel.
– Pai, o que está havendo? – perguntou Mariana
– Não sei, filhota.
Antes que mais alguém pudesse falar alguma coisa, uma risada cortou o ar e parte das trevas assumiu uma forma humanoide.
– Har’Gorth, já devia imaginar que era você – disse Lucca. – Seu mestre está com medo de me enfrentar?
– Ora, cavaleiro, você deveria saber que, diferente de mim, meu mestre não tem poder neste mundo. Mas não importa, eu sirvo para fazer as vontades dele e hoje meu assunto não é contigo e sim com os ex-servos de Darklit.
Duas mãos de trevas surgiram e levantaram Rai e Paulus pelo pescoço.
– Onde vocês esconderam o livro que o seu mestre roubou do meu?
– Você está achando o que, cramunhão? Que eu vou ajudar aquele defunto? Nem morta – respondeu Rai.
– Morta? Isso pode ser providenciado.
A mão que a erguia começou a apertar o pescoço de Rai, mas uma rajada de luz cortou esta e a que erguia Paulus. Quando Har’Gorth olhou para o lado, Lucca estava segurando uma de suas famosas espadas, que brilhava como uma estrela.
– Filha, proteja os dois com um campo de força – disse ele.
Atendendo ao pedido do pai, Mariana foi para junto de Paulus e Rai e, com um gesto de mão, fez surgir um campo de energia circular em torno dos três.
– Agora terás que se ver comigo, demônio – disse Lucca – e imagino que estejas ciente do estrago que minha espada, mesmo aqui na Terra, pode fazer em você.
– Eu adoraria descobrir, cavaleiro, mas não tenho negócios com você hoje. Servos de Darklit, vocês têm uma semana para me darem o que quero ou eu voltarei. E eu duvido que o Cavaleiro Branco possa protege-los 100 por cento do tempo.
Do mesmo modo que surgiu, a nuvem negra sumiu e os cinco se viram de volta aos bastidores. Aparentemente era como se o tempo não tivesse passado pois ninguém ali notara nada.
– Luquinha, obrigado pela ajuda.
– É meu papel como herói, Paulus, ajudar quem precisa. Aliás, de que livro ele falava afinal?
– Bem, lembram quando Sad’Gorth traiu nosso antigo mestre e avisou vocês de que ele pretendia recriar a “Ceifadora de Almas”?
– Sim, claro.
– Como punição pela traição, nosso mestre nos fez roubar e esconder um dos tomos negros que o Sad’Gorth possuía.
– E é este que ele quer de volta?
– Exato.
– Entendo. Paulus, você ainda lembra aonde escondeu o livro?
– Claro.
– Então me conte, eu irei recupera-lo e dar um jeito no velho saco de ossos do Sad’Gorth.
– Não tenho como agradecer, Luquinha. Assim que chegar em casa prepararei um mapa e ele enviarei por email. E, mais uma vez, obrigado.
– Não precisa agradecer, como eu disse antes, é meu papel como herói. Agora, se me dá licença, temos uma missão a preparar. E não se preocupem, tanto você quanto a Rai estão ótimos. Já usei meus poderes para checar isso. E, Rai, o bebê também está bem.
– Bebê? – falou Paulus intrigado.
– Obrigado por estragar a surpresa – reclamou Rai com cara de poucos amigos. – Já que estragastes, pelo menos podia me dizer o sexo do bebê?
– Vai ser uma menina. Meus parabéns pela criança, agora, se nos dão licença, temos o que fazer e planejar.
Os três saíram deixando Paulus e Rai para trás.
– Eu falei que o meu plano era perfeito – sorriu o estilista, falando num tom de voz bem menos afetado do que usara até então.
– E eu não acreditei.
– Ora, querida, sempre podemos contar com a nobreza do Lucca. Quando Sad’Gorth começou a aparecer nos meus sonhos exigindo o livro, sabia que que só ele poderia nos ajudar.
– Nós tivemos foi sorte que a filha dele sonha em ser modelo.
– É verdade, mas eu daria um jeito de atrai-los hoje, no dia marcado por Sad’Gorth para a entrega e de conseguir a ajuda deles.
– Não duvido, querido. E quanto à filha deles? Vai continuar chamando-a para desfilar uma vez que já conseguiu o que querias?
– E por que não? Você tem que concordar que ela é linda e foi muito bem na passarela.
– De fato.
– E é sempre bom ter heróis ao alcance. Principalmente para pessoas com o nosso passado, digamos, “negro”.
– Paulus, realmente tenho que reconhecer que as vezes você é genial.
– Só as vezes? – sorriu o estilista. – Alias, que história é essa de bebê?
– Eu queria lhe fazer uma surpresa, mas aquele cavaleiro idiota estragou.
– Não importa, o que importa é que vamos ter nossa princesa.
– Que bom que você gostou. Aliás, você podia pensar em parar de usar esse tom de voz afetado que usou com eles e que volta e meia usas nas entrevistas.
– Ora querida, o público espera um estilista afetado e que fique desmunhecando, por que não dar ao público o que ele quer? Sem falar que ajudou a reforçar o visual de “Madalena arrependida” diante do Lucca, não?
– De fato, embora você não tenha mentido quando falou nas doações.
– Lucca é um detector da verdade vivo, nunca se esqueça disso. Podemos omitir coisas dele, mas mentir para ele é burrice. E você bem sabe que só parei de ter pesadelos e gritar durante a noite depois que passei a doar dinheiro. E eu troco todo o dinheiro do mundo por uma boa noite de sono.
– Paulus, você é uma figura e tanto.
– E, no entanto, me amas assim mesmo, não?
Um pouco mais tarde, Lucca discutia com a filha em casa.
– Pai, eu vou, quer você queira ou não.
– Mari, você nunca foi numa missão.
– Ué, não é você que me cobra participar mais desse lado da família?
– Sim, mas….
– Então, o Paulus me ajudou, eu quero ajudar ele também.
– Entendo…
– Então eu estou dentro?
– Ok, mas você não vai sozinha…
– Pai…
– É pegar ou largar…
– Tá bom, eu pego.
– Ótimo.
3-
Dois dias depois Lucca esperava a filha terminar de se preparar para repassar as últimas instruções para esta quando ela entrou no quarto onde ele estava, ainda sem ter terminado de se arrumar.
– Pai, qual é a do Paulus? – perguntou ela, logo ao entrar.
– Como assim Mariana? Não entendi.
– É que eu quero conhecer melhor a pessoa que eu vou ajudar. Não que eu vá desistir de ajudar ele diante do que você me contar, sou grata por ele ter me dado uma chance como modelo e só por isso já estou disposta a ajudá-lo embora aventuras não sejam bem a minha “praia”.
– Ok, começo a entender o motivo da sua pergunta, mas sigo sem entender a sua pergunta em si.
– Bem, como vou explicar… Eu sempre achei que ele era gay ou mesmo transexual se consideramos que lá em Noritvy ele era ela, por assim dizer, mas ontem ele estava acompanhado de uma esposa, um filho e prestes a ser pai de novo.
– Não sei porque isso lhe incomoda, filha, a vida sexual do Paulus só diz respeito a ele mesmo…
– Não me incomoda, longe disso, eu tenho amigos gays, lembra? Só fiquei curiosa mesmo.
– Entendi. Olha, quando eu conheci o Paulus, há muito tempo, quando a gente chegou brevemente a ser amigo…
– Vocês foram amigos??
– Sim, antes dele conhecer o Marco e a Raimunda.
– Quando você fala em Marco e Raimunda, pai, você está falando do Marco que é o falecido Guerra, que supostamente era o seu rival e a Raimunda que é a mulher do Paulus e também era a Fome, certo?
– Exato, filhota, e suposto não, o Marco foi criado para ser o meu rival, o problema dele é que ele sempre pensou com os punhos e não com o cérebro. E, ainda assim, foram necessárias quatro pessoas para derrotá-lo na primeira vez.
– É, mas na segunda o tio Sieg derrotou ele sozinho.
– Teu tio é tão bom guerreiro quanto eu, se não for melhor e é bem mais experiente. Mas deixemos isso de lado.
– Certo.
– Como eu dizia, desde que eu conheci o Paulus, antes dele “passar para o lado” do Marco, ele sempre se disse gay, nunca transexual.
– Mas em Noritvy ele era mulher!
– Sim e isso tem uma explicação, filha: ele era apaixonado pelo Marco, mas esse era hétero. Então, na cabeça do Paulus, imagino eu, pelo que eu descobri, deve ter passado a seguinte ideia: vou virar mulher, conquista-lo e depois convencê-lo a me assumir na Terra também. Mas não deu certo. Segundo as minhas fontes o Marco se envolveu com mulheres de Noritvy, dizem que chegou a engravidar uma moça lá, mas nunca deixou de ver o Paulus como um amigo, usando às vezes até pronomes masculinos na hora de falar com ele.
– Pode soar estranho, pai, mas eu to com pena dele. Fez tudo por um amor e não conseguiu nada.
– Estranho porque? Só porque ele é ou foi um “cara mal”?
– Exato.
– Mariana, não há nada de errado em sentir pena ou dó de alguém mesmo que esse alguém seja uma pessoa ruim. Isso justamente é uma das coisas que separam as pessoas boas das ruins. Uma pessoa boa é capaz de sentir compaixão por todos aqueles à sua volta, mereçam eles ou não.
– Exato, minha filha, seu pai tem razão – falou Ardriel que entrara no quarto sem ser notada. – E não é algo fácil acredite. Mas seu pai sempre fez isso parecer fácil e foi uma das características dele que fizeram eu me apaixonar por ele: essa capacidade de estender a mão ao próximo, seja ele quem for.
– Tá, ok, agora só uma última pergunta: vocês acreditam nessa história dele ter “trocado de lado” e agora estar casado?
– Não acho que ele tenha “trocado de lado”, minha filha, eu já conheci várias pessoas que alegavam se apaixonar pelo “indivíduo” e não pelo sexo, talvez o Paulus seja uma dessas pessoas, talvez ele tenha se apaixonado pela pessoa da Raimunda e deixado a questão do sexo dela de lado.
– E eu concordo com a tua mãe, Mari, conheci várias pessoas assim e posso te garantir que ele não mentiu quando disse que o filho foi feito usando o “método natural”.
– Até nisso você usou o seu dom de detectar mentiras, pai?
– Minha filha, quando se trata de Paulus e Rai eu estou sempre usando o meu dom. Agora para de enrolar e vai terminar de se arrumar.
– Ok!
Mariana foi terminar de se arrumar e quando retornou usava um traje nada usual para ela: uma armadura de couro e placas metálicas que protegia o tronco, com uma saia de tiras de couro que protegia as pernas e um par de botas que ia até o joelho. Usava também duas munhequeiras de couro reforçado e trazia uma espada curta presa na cintura.
– Afivelou bem a armadura?
– Sim, pai.
– Pegou a mochila com os suprimentos?
– Sim, inclusive o inútil kit de costura.
– Precisa de mais alguma instrução?
– Não, pai…
– Está bem então, filha.
– Ah, pai…
– Sim?
– Tem certeza de que não posso levar a Lady comigo?
– Filha, por mais sua grifa tenha o tamanho de um rottwailler, ela ainda é um filhote e grifos e cavernas não costumam se dar bem.
– Tá bom….
– Agora vai que sua tia está lhe esperando.
– Tia?
Com um gesto, Lucca teleportou a filha sem responder à pergunta desta. A jovem, quase instantaneamente, reapareceu nas Montanhas Negras, mais precisamente dentro do Reino subterrâneo dos anões, num canto pouco povoado e pouco iluminado deste. Bastou os seus olhos se acostumarem com o escuro para reconhecer quem lá a esperava: era sua tia Vali, irmã de consideração do seu pai e sua madrinha. Vali era uma elfa de altura média, cabelos negros lisos e olhos dourados. Vestia uma armadura similar à de Mariana e trazia um grande arco com uma aljava cheia de flechas nas costas, além de uma capa cinza presa nos ombros.
– Dinda! – disse Mariana com um grande sorriso enquanto abraçava Vali. – Então é a senhora que vai me acompanhar hoje?
– Senhora não, Mari, você, por favor – sorriu a elfa. – E eu me ofereci para vir hoje. Estava com saudades da minha linda afilhada e, além disso, temos um perfil parecido no estilo de luta.
– Temos?
– Sim, assim como você eu combino magia com técnicas de luta, e, principalmente, ataques à distância.
– Definitivamente, tia, não gosto de sujar as minhas mãos, nem de ficar com ela dura e cheia de calos.
Vali nada respondeu, apenas riu diante do comentário da sobrinha.
– Alias, tia, cadê o anão que vai guiar a gente?
– Anão? Nenhum anão se atreve a ir aonde a gente vai, Mari.
– Não? E como a gente vai se guiar por lá então? Você conhece o lugar?
– Não. No local onde nós vamos, no passado, vivia um perigoso demônio que os seus pais ajudaram a matar e, por isso, até hoje, os anões daqui tem medo do lugar, embora eles digam que não tem medo, apenas receio. Talvez por isso Darklit tenha mandado esconder o livro lá, pois sabia que ninguém entraria neste lugar. E, não, eu não conheço o lugar. Mas o seu pai ficou de mandar um guia que já explorou a região e que enxerga melhor no escuro do que um anão.
– Desde que cheire melhor que esses anões daqui das Montanhas Negras, por mim tanto faz quem ele mande.
– Não se preocupe, alteza, eu garanto que meu cheiro não desagradará vosso sensível nariz – disse uma voz fina.
Quando Vali e Mariana olharam para o lugar de onde vinha a voz, levaram um susto. Parado diante delas estava uma criatura de uns cinquenta centímetros de altura e quatro braços que lembrava uma barata usando uma calça bege, uma camisa branca, um colete verde por cima desta e trazendo preso nos ombros, uma surrada capa cinza com um capuz. E deste saiam um par de finas antenas.
– Uma barata falante! – gritou Mariana, visivelmente com nojo.
– Barata não, alteza, Baratis. Por favor não me confundir com meus primos irracionais.
– Você é o guia que o meu irmão mandou? – perguntou Vali, com um ar casual, embora, na verdade, também estivesse com nojo.
– Exatamente, senhora. Sou Rach e estou inteiramente ao seu dispor. Diferente dos anões daqui eu já explorei essas cavernas e nós, baratis, enxergamos melhor no escuro do que eles, embora eles nunca admitam isso. Se a senhoras já estiverem prontas, podemos partir.
– Já estamos sim – respondeu Vali.
– Ótimo – sorriu o pequenino.
Rach atravessou o portão que marcava o começo do caminho deles, seguido por Vali e Mari, que fazia questão de manter uma certa distância do seu guia.
O grupo seguiu por um corredor úmido e pouco iluminado que parecia seguir para o interior da Terra pois cada vez descia mais. Era relativamente largo, tendo algo em torno de uns cinco metros de largura e uns quatro de altura e era toscamente escavado na rocha. Depois de uma descida que levou aproximadamente uma hora, chegaram num grande salão, amplo, mais largo que um campo de futebol, com longas colunas e grandes estalactites no teto.
O guia tirou um pequeno papel do bolso do colete, o desdobrou e ficou analisando ele por alguns minutos.
– Bem, senhoras, segundo este mapa, que me foi dado por Lord Lukhz, teremos que pegar o túnel da esquerda, o que, eu, sinceramente, adoraria evitar.
– Por que? – perguntou Mari.
– O túnel da esquerda é povoado por goblins, senhorita.
– Goblins?
– Sim, imagine orcs menores, mais fracos, mas mais ágeis, mais cruéis e capazes de usar magia, isso são goblins – explicou Rach.
– Seu pai, Mari, costuma dizer que meia dúzia de goblins não oferecem risco nenhum. Mas não creio que só tenha meia dúzia por aí – comentou Vali.
– Não mesmo, senhora, deve haver uma centena ou mais nestes túneis.
– Ao mesmo tempo não podemos retornar sem o tomo – falou Vali – então só nos resta seguir em frente.
Eles caminharam até a entrada do túnel. No topo desta havia um símbolo estranho desenhado, junto de letras mais estranhas ainda.
– Língua goblinoide. Eles realmente estão por aí – suspirou Rach.
– E o que sugeres, Rach? Existe alguma rota paralela? – perguntou Vali.
– Sugiro que fiquem aqui, senhoras. Irei fazer um reconhecimento. Para nossa sorte, o meu povo é capaz de se encolher até assumir a aparência de uma barata e, bem, baratas são comum por aqui – explicou o guia e, com um sorriso, emendou – Peço por favor que não matem nenhuma enquanto eu estiver fora.
Antes que qualquer uma das duas falasse algo, Rach sumiu dentro da própria roupa e, de dentro desta, saiu voando uma pequena barata marrom. Esta entrou no túnel e sumiu nas trevas deste.
Não tendo outra escolha, as duas elfas sentaram no chão, junto das roupas do pequeno guia, conversando.
– Sabe, Mari, eu realmente fiquei feliz ao saber que você se ofereceu para vir aqui, hoje.
– É, tia, eu nunca me liguei no lado guerreiro da família, por assim dizer e continuo sem me ligar, mas, ao mesmo tempo, sei que, sendo filha de quem sou, é sempre bom saber me virar um pouco. E eu sou grata ao Paulus por estar me ajudando na carreira de modelo. Sei que ele, como diz o meu pai, “não é flor que se cheire” e que fez muita coisa ruim por aqui, mas ainda assim me sinto em dívida com ele. Pode parecer estranho, mas é assim que me sinto.
– Estranho por que, Mari? Ele lhe ajudou e você quer ajudar de volta. Isso se chama gratidão, não há nada de errado em ser grata a alguém que lhe fez o bem.
As duas continuaram a conversar, sobre coisas sérias e também sobre banalidades até que o guia delas retornou.
– Senhoras, parece que a sorte está ao nosso lado. Boa parte dos goblins parece ter saído para caçar e o livro está desprotegido, numa mesa ao lado do trono do rei deles.
– Ótimo, vamos logo pega-lo – sorriu Vali.
Guiadas pelo baratis, as duas guerreiras desceram por uma série de túneis, fazendo alguns desvios à esquerda e à direita. Logo chegaram à uma grande câmara, que fedia à carniça. No fundo desta havia um trono feito de ossos e, ao lado deste, havia uma mesa, igualmente feita de ossos e, sobre está, um livro velho com uma capa de couro negro.
Segurando a ânsia de vomito provocada pelo cheiro, o grupo caminhou sorrateiramente até a mesa e se apoderou do livro. Rach deu suspiro de alívio ao ver que nenhuma armadilha se acionou quando ele tirou o livro da mesa e já liderava o grupo para a saída quando um pelotão de goblins brotou de um túnel lateral. À frente deste havia um goblin quase tão grande quanto um orc. Ele trazia sobre a cabeça uma coroa feita com o crânio de um anão, trajava um saiote adornado de ossos e segurava um longo cajado também feito de ossos.
– Vocês achavam que entrariam nos domínios do Rei Xamã das Montanhas Negras sem seres notados? – grunhiu o monstro. – Agora me passem o meu tesouro, o meu livro.
– Só por cima do meu cadáver – retrucou Rach.
– Isso pode ser providenciado, barata.
O rei ergueu o cajado em direção ao teto da caverna e três raios de energia roxa surgiram deste, cada um acertando um dos seus inimigos e levando os três à nocaute.
4-
Mari acordou assustada numa cela úmida, com a sua capa amontoada debaixo da cabeça, servindo de travesseiro. A primeira coisa que fez ao acordar foi procurar seus companheiros. Encontrou a tia sentada num canto da cela, cuidando de Rach, que parecia muito ferido.
– Mari, que bom que você acordou – disse Vali, se esforçando para sorrir.
– O que houve com ele, tia?
– Bem, se o raio enviado pelo rei goblin foi suficiente para nos derrubar, imagine para alguém pequeno como o Rach.
– Não se preocupe, senhora, já estive pior – disse o pequenino antes de começar a tossir.
Antes que mais alguém pudesse falar algo, dois goblins, com um ar malicioso nos seus olhares, rindo, chegaram até a porta da cela. Um deles tirou uma chave do bolso e começou a abrir esta.
– Tem certeza de que podemos fazer isso? – perguntou o outro.
– Não é você que disse que está cansado de estuprar anãs e queria provar a doçura de uma elfa? E não se engane, essas elfas são nobres, pelo jeito delas se vestirem e agirem. Quem sabe a gente não tenha a chance de foder alguém da realeza? Vamos fazer o combinado: você vigia elas enquanto eu faço o serviço, depois a gente troca.
Os dois goblins entraram na cela. O que perguntara se era seguro fazer o que iam fazer pegou Mariana pelos cabelos, mantendo-a de joelhos no chão e encostou uma faça no pescoço dela. O outro, se voltando para Vali, disse:
– Se não quer que a sua amiga perca a cabeça, se afaste do inseto e pode arriando as calças.
Vali por um breve instante ficou a pensar no que fazer. Se estivesse sozinha, poderia usar seus truques mágicos para derrubar os dois. Agora, com Mari de refém, ela conseguiria derruba-los sem que antes machucassem Mari? Antes que ela tomasse qualquer decisão, algo que ela não esperava ocorreu. Rach abriu as asas com dificuldade e, alçando voo, se jogou contra o rosto do goblin que segurava Mari como refém.
Nem o bandido esperava por isso, tanto que, instintivamente, ele largou a moça, agarrou o inseto e o jogou longe. Sem titubear e se lembrando das aulas de defesas ministradas por seu pai, Mari, que ainda estava ajoelhada no chão, desferiu uma cotovelada no saco do goblin. Quando este se curvou de dor, a elfa rapidamente se levantou e enfiou uma sonora joelhada no meio do rosto imundo deste, nocauteando-o.
Aproveitando a confusão gerada pelos outros dois, Vali gerou uma bola de energia e lançou contra a virilha do outro goblin. Este, ao ser acertado, caiu no chão urrando de dor.
– Da próxima vez que tentares estuprar alguém, tenho certeza de que se lembrará de mim – disse ela e, após pronunciar tais palavras, desferiu um chute no meio das pernas do vilão com tal força que algo estalou.
A elfa já olhava para a sobrinha vislumbrando uma oportunidade de fugir quando uma sombra surgiu da entrada da cela e o rei goblin, acompanhado de vários soldados, entrou nesta.
– Dois idiotas – disse ele, olhando para os soldados feridos -, vocês realmente acharam que iam estupra-las com a mesma facilidade com que estupram uma anã? Soldados, tirem esses imbecis daqui e reforcem a segurança. Quanto a vocês, senhoritas, não se preocupem, ninguém as oportunará mais.
O rei saiu seguido de seu pajem. Quando já se encontravam distantes da cela, este perguntou a seu mestre:
– Meu rei, porque não deixar os homens se divertirem com elas? Tenho certeza que pagarão o valor do resgate com elas inteiras ou não….
– É por isso que eu sou o rei e você o pajem. Pela qualidade das armas e das roupas, logo se vê que as duas são nobres. Além disso a mais nova trazia uma rosa incrustada na fivela do cinto.
– E?
– A rosa, idiota, é o símbolo da segunda casa mais poderosa entre os elfos, a casa do campeão de Arlon, o maldito que matou o meu mestre Darklit.
– Mais um motivo para deixar os homens se banquetearem delas.
– Imbecil, diferente de nós, elfos e homens prezam pela família e pela honra desta. Eles não pensarão duas vezes em pagar o resgate. Agora, se algum de nós violentar alguma das duas, não duvide, eles derrubarão tudo isso aqui sobre nossas cabeças. E nós ainda não estamos prontos para enfrentar tal fúria. Em breve, quando eu tiver terminado de dominar todos os mistérios do livro, estaremos, mas ainda não estamos. Então, o próximo que tocar em um fio de cabelo delas será morto por mim, pessoalmente, fui claro?
– Sim, mestre.
Na cela, Vali aparava um ainda mais ferido Rach enquanto Mari, com os olhos cheios d’água, brigava com ele:
– Idiota, por que você fez isso? Já não estava ferido o suficiente?
– Alguém tinha que proteger a senhorita. E eu ainda pude roubar isso – disse o pequenino enquanto mostrava a chave que havia roubado. – Eu estou ferido, mas posso distrai-los para vocês fugirem.
– Eu não entendo. Desde que te conheci mal falei contigo, te chamei de barata e no entanto você já se sacrificou uma vez por mim e está disposto a fazê-lo de novo. Por que?
– Por causa do seu pai.
– Hã?
– Eu era um pouco mais do que uma pupa quando o meu pai me levou com ele num encontro diplomático em Tilania, a capital dos anões cavaleiros de grifo. Naquele mesmo dia o seu pai chegou para um encontro com o rei, acompanhado de parte da Guarda Real de Arlon. Quando vi aqueles imponentes guerreiros com seus trajes alvirrubros, liderados pelo seu pai na sua armadura brilhante, desejei ser um deles, um cavaleiro como eles. E um cavaleiro está sempre disposto a se sacrificar para proteger uma dama.
– Você está errado. Meu pai não é um cavaleiro.
– Não?
– Não, meu pai é um herói e se você quer ser como ele, saiba que um herói sempre dá um jeito de salvar não só os outros, mas também a si próprio, viu?
– Eu vou me esforçar então – sorriu Rach.
– Você tem é que descansar primeiro, isso sim – retrucou Vali e, com um gesto, usando um truque que havia aprendido à alguns anos, a elfa fez o pequeno baratis dormir.
– Ele desmaiou? – perguntou Mari.
– Não, eu apenas o fiz dormir, se calme Mari.
Vali pegou a sua capa, que jazia caída num canto, a enrolou a pôs sobre a cabeça de Rach.
– Tia, o que faremos agora? Temos que fugir, mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar o livro com eles, podemos?
– Não, não podemos. Só que o Rach não tem condições de lutar no estado que está e eu não posso usar meus poderes para cura-lo, tenho que conservar energia para fugirmos daqui.
– Eu posso tentar. A tia Lili me ensinou alguns truques de como curar ferimentos mais simples. Talvez não seja o ideal, mas já deve ajudar, não?
– Claro que ajuda.
– Alias, tia, eu tive uma ideia agora…
– Qual?
– Você não poderia usar nos feiosos o mesmo truque que usou no Rach para ele dormir?
– É uma boa ideia. Mas antes você precisa se concentrar em ajudar o nosso pequeno guia.
Mari respirou fundo, se colocou de joelhos do lado de onde repousava o pequenino e colocou suas duas mãos espalmadas acima do corpo deste. A jovem começou a se lembrar do que lhe ensinara a sua tia Liliana, de que a magia de cura é a mais difícil, mas a mais pura das magias, movida pelo desejo de proporcionar bem-estar ao seu alvo, necessitando de um coração sereno e confiante. Se fosse a alguns dias atrás, ou mesmo à algumas horas, Mari talvez não fosse capaz de executar tal feitiço em um ser como Rach mas as atitudes do pequenino haviam impressionado ela e o asco que ela sentira por ele num primeiro momento havia dado lugar à um sentimento de respeito e todo aquele discurso manjado dos pais dela de que nunca devia se julgar alguém pela aparência finalmente passara a fazer sentido.
Uma tênue luz branca surgiu a partir das mãos da jovem e logo envolveu por completo o pequenino. Depois de algum tempo esta se extinguira, Mari passara a respirar como se estivesse cansada, mas Rach agora respirava de maneira suave e não mais com esforço.
– Será que funcionou?
– Você fez o que podia, Mari – sorriu Vali. – Agora deixe-o descansar e sugiro que você descanse também.
– Ta bom, tia.
Mari se ajeitou como dava, sentando encostada na fria parede da cela e acabou por cochilar.
Quando acordou, viu Rach conversando calmamente com Vali, fazendo planos e isso deixou o seu coração mais leve. O pequenino, ao vê-la desperta, foi em sua direção, fez uma mesura e com um sorriso disse:
– Senhorita, sou muito grato pelo que fizestes por mim e saiba que estarei eternamente em dívida convosco.
– Bobagem, só quis ajudar um companheiro ferido, nada mais do que minha obrigação. Agora eu imagino que você e a minha tia já tenham pensado num plano.
– Sim, só não sei se é um bom plano…
– Nós vamos usar sua ideia, Mari, de tentar botar todo mundo para dormir. E quem não dormir, bem, a gente passa por cima.
– E o rei Goblin, tia?
– Ele me pegou de surpresa uma vez, não vai conseguir fazê-lo de novo – respondeu Vali enquanto estalava os dedos da mão com um sorriso maroto no rosto.
Os três se prepararam como davam, prenderam bem suas capas e, silenciosamente, se aproximaram da porta. De maneira inaudível, Vali colocou a chave que Rach roubara na fechadura e destrancou a porta. Depois disso abriu uma fresta nessa, tentando fazer ao máximo que suas dobradiças não emitissem nenhum ruído. Tendo sucesso nisso, ela colocou o rosto para fora e espiou. Notou que havia dois guardas de plantão que não haviam notado nada.
A elfa pegou fôlego, se concentrou e lançou neles, de maneira silenciosa o feitiço de sono. Os dois soldados de maneira quase instantânea desabaram no chão. Os três saíram da cela e trataram de pegar suas armas e equipamentos que jaziam numa mesa em frente a esta.
Tendo se armado novamente e certificado que estava tudo bem preso, para fazer o menor barulho possível, eles começaram a se esgueirar pelos corredores da base dos goblins. Vali ia na frente, sendo que possível derrubando os adversários com o seu feitiço de sono, mas, quando não era possível, acabavam por ter que nocauteá-los por meio da força física.
De maneira mais fácil do que esperavam, eles chegaram à sala do trono e lá encontraram o livro em cima da mesa e o pajem do rei dormindo no trono real. Rach se esgueirou até ele é, encostando a sua fina espada no pescoço dele, sussurrou:
– Sei que minha espada mais parece um palito de dentes, mas saiba que ela é afiada o suficiente para lhe matar caso você tente algo.
Acordado no susto e sentindo o fio no seu pescoço, o goblin se encolheu todo e nada disse. Aproveitando que o goblin não tentou chamar reforços, Mari pegou o livro enquanto Vali, com um golpe rápido, nocauteou o adversário.
Eles já estavam pegando o corredor principal que os levaria à saída quando um barulho de palmas se ouviu. Se voltaram para o local de onde vinha o som e viram o rei goblin a aplaudir, ao lado dele havia uma criatura ainda maior e mais feia do que ele e alguns soldados.
– Meus parabéns, vocês quase conseguiram. Agora queiram devolver o meu livro e eu prometo que o meu sobrinho não vai machucar muito vocês – disse o rei, apontando para o grandalhão ao seu lado.
– Seu sobrinho? É, a feiura é de família – provocou Mari.
– Vá brincando, menina. Meu sobrinho é filho da minha irmã com o sobrinho do líder do maior clã de orcs das cordilheiras centrais. Não foi fácil fazê-los se encontrarem e se acasalarem mas valeu a pena. Com a minha ajuda ele será o próximo rei negro, o líder que unificara goblins e orcs e que vai destruir os reinos élficos do centro do continente.
– Ahã, é isso aí, tio – falou o monstro.
– É, grande e burro, vai ser um belo rei – debochou Rach.
– Silencio, inseto!
Após ter gritado isso, o rei goblin invocou o mesmo feitiço que os nocauteara antes, mas, desta vez, para sua surpresa, os raios foram rebatidos no meio do ar, acertando os seus soldados.
– O que houve? – disse ele confuso.
– Você realmente acha que eu cairia no mesmo truque duas vezes? – sorriu Vali.
– Não seja por isso, tenho certeza de que meus soldados cuidarão de vocês.
– Ué, você não é o poderoso rei goblin? Seu sobrinho não é o futuro rei negro? E vocês precisam de ajuda para cuidar de duas mulheres e um inseto?
– Insolente! Sobrinho, recupere o livro. Desta elfa cuido eu.
O rei partiu para cima de Vali enquanto o seu sobrinho foi atrás de Mari e Rach. O estúpido guerreiro trazia um machado consigo e o usou para atacar os dois. Com esforço, usando suas espadas, Mari e Rach, que se encontrava planando no ar, apararam o golpe do adversário, mas a força acabou por desequilibra-los. Rach ficou na frente de Mari para protege-la e um novo golpe do adversário acabou por decepar sua mão inferior esquerda.
Aproveitando a abertura e, tomada de raiva, Mari se lembrou de todas as aulas de esgrima que tivera com seu pai, com sua irmã mais velha, Galawel e com o seu primo Karlon e, com um golpe preciso no pulso, acabou por decepar a mão direita do monstro.
– Como se diz de onde eu vim, olho por olho, dente por dente e no caso, mão por mão – falou Mari, após aplicar tal golpe.
Vendo o que ocorria, Vali abriu um sorriso e jogou uma esfera de luz na cara do rei, cegando o temporariamente. Sem dar chance aos inimigos, ela correu até onde estavam Mari e Rach. A elfa jogou o ferido baratis sob o ombro e virou para a sobrinha:
– Vamos, a cavalaria chegou.
Mari no primeiro momento não entendeu o que a tia quis dizer, mas não havia tempo para discutir. Ela saiu correndo atrás dela, sendo perseguidas por um pelotão de goblins raivosos.
Subiam caverna acima e, assim que fizeram uma curva, entraram num salão mais amplo e finalmente a jovem compreendeu as palavras de sua tia. No meio do salão havia um portal de energia, através do qual podia se ver as campinas verdejantes que predominavam no reino de Arlon e, parada do lado do portal havia uma guerreira trajando uma armadura prateada clara, quase branca, com detalhes vermelhos e com uma rosa vermelha desenhada no meio do peito.
Embora raramente a tivesse vista trajando aquela armadura, Mari reconheceu logo sua mãe, Ardriel, usando a sua armadura de guerra, conhecida como “Dama Vermelha” e sorriu.
Enquanto atravessava o portal, Mari ainda olhou para trás e viu a sua mãe erguer a sua espada, “Flamejante” e criar uma barreira de fogo entre os goblins e o portal, impedindo estes de o alcançar.
A jovem se jogou cansada na grama, respirando pesada, só para ser logo erguida deste por seu pai, Lucca, que lhe deu um forte abraço e um sorriso.
– Estou orgulhoso de você, filha, se saiu muito bem na sua primeira missão.
– É, tirando que eu e a tia quase fomos estupradas por dois goblins babões, tudo bem.
– Isso é verdade, maninha? – perguntou ele, sério, para Vali
– Ahã.
Lucca nada disse. Apenas deu um assobio forte. Logo um imenso grifo prateado apareceu do seu lado. Seguido pelo animal, Lucca foi até o portal. Ajudou sua esposa a sair deste e, com um gesto, o fez ficar bem menor, insuficiente par alguém passar. Feito isso, fez um sinal para o animal que estava ao seu lado. A poderosa fera enfiou o bico no buraco e soltou um grito sônico. Depois disso, o cavaleiro finalmente fechou o portal.
– Pai, você tem noção que o grito do Flecha pode ter derrubado o teto da caverna? – perguntou Mari.
– Ora, minha filha, a ideia era essa – sorriu ele.
– Alias, vocês podiam ter aberto o tal portal antes, né? Ou ter nos teleportado para fora dali.
– Desculpe, filha, mas alguma coisa nos impedia de rastrear vocês. Ou mesmo de nos teleportar para lá. O mais próximo que conseguimos foi abrir esse portal onde abrimos e só conseguimos porque sua tia Vali conseguiu nos contactar e informar sua localização aproximada.
– Provavelmente a magia do rei goblin estava interferindo na comunicação, maninho. Mas o que importa é que conseguimos o livro e eu estou precisando de um bom banho.
– Por falar nele, pai, o que faremos com esse livro?
– Deixa que dele eu cuido, filha – disse Ardriel, já sem o capacete. – Paulus se ofereceu para guarda-lo, mas ele é perigoso demais para ficar nas mãos de qualquer pessoa.
A jovem entregou o livro para a mãe. Ardriel olhou o livro, folheou ele rapidamente e, se virando para o marido, falou:
– É, com certeza esse é um dos tomos malditos de Dak.
– Então, amor, faça as honras – disse Lucca.
A princesa fez surgir na mão que segurava o livro uma chama branca, brilhante, que engoliu o livro e, quando esta se apagou, restavam apenas cinzas na sua mão.
– Bem, livro destruído, goblins punidos, acho que podemos ir embora, né? – falou Lucca antes de teleportar todos para o castelo real de Arlon.
Uma semana depois, seguindo um pedido de sua filha e usando de suas prerrogativas de princesa herdeira, Ardriel nomeou Rach cavaleiro da coroa de Arlon e também de Erdan. E foi assim que “Rach das Três Mãos”, como ele passou a ser conhecido, se tornou uma lenda entre os baratis, sendo o primeiro deles a se tornar um aventureiro de respeito e membro da corte de um dos “povos grandes”, que é como eles chamavam anões, elfos, homens e alados.