Parte 2
Uma semana depois da reunião em Arlon uma pequena comitiva formada por Lucca, Ardriel, Galawel, Tiron e cinco soldados de elite de Erdan chegava na entrada de Vallah. Galawel tentara convencer o seu avô a levar uma escolta maior, mas este disse que não queria parecer um invasor na cidade alheia e que a neta, a filha e o genro eram toda a escolta que ele precisava.
Vallah era uma importante cidade comercial pois era o maior porto do Norte, uma vez que suas costas eram banhadas por uma corrente maritima de águas quentes vindas do sul que impediam o porto de congelar mesmo no rigoroso inverno local.
Como toda grande cidade do norte, era cercada por uma imensa muralha de pedras cinzentas assentadas com ajuda de óleo de baleia que começava onde o mar quebrava, ao sul do porto, contornava toda a cidade e terminava juntamente ao mar, ao norte do porto, tendo o formato de um “c” espelhado. Esta era larga, tendo espaço para um cavalo cavalgar com tranquilidade sobre ela e possuía três portões fortemente guardados que davam acesso à cidade: um ao sul, um ao norte e outro à leste, em posição inversa ao porto.
Num primeiro momento a cidade pareceu fechada e pouco convidativa aos olhos de Galawel, Ardriel e Lucca, que a viam pela primeira vez enquanto Tauron a achava um tanto quanto mais melancólica do que se lembrava. E essa impressão do rei élfico só piorou quando entraram nesta.
Era uma cidade organizada e limpa, com ruas calçadas de paralelepípedos escuros e casas construídas basicamente de rochas cinzas, algumas caiadas de branco, outras de cores pastéis a que a comitiva viu após cruzar os portões, mas sem a metade da vida e do movimento que esperavam diante do tamanho e da importância desta. As pessoas que caminhavam pelas ruas tinham um ar triste e taciturno, sendo raro avistar um sorriso no rosto dos transeuntes, mesmo das crianças que normalmente costumavam ser mais alegres do que os adultos.
Gala não pode deixar de comparar aquela cidade com Arlon e Erdan. Claro que estas também tinham seus defeitos e havia pessoas tristes nelas, mas as suas ruas no geral eram lotadas de pessoas falantes, sorridentes, conversadeiras, que pareciam estar realmente vivendo suas vidas enquanto o povo de Vallah apenas parecia sobreviver em vez de viver.
O grupo foi direto até a estalagem recomendada por um dos espiões de Arlon que havia explorado a cidade ao mando do seu rei e, ao menos nesta, encontraram um ambiente mais convidativo. O “Abutre Nevado” era uma estalagem de quatro andares, construída com pedras cinzas e vigas de madeira aparentes e com um telhado de telhas que haviam sido pintadas de branco assim como sua porta e suas janelas.
Ao entrarem na estalagem foram recebidos por um cheiro de boa comida caseira que os fez se lembrarem que estavam com fome e com uma harmoniosa música cantada por uma cantora élfica que era acompanhada por um anão tocando um alaúde. Um senhor forte, levemente barrigudo, barbudo e calvo que vestia trajes simples e que usava um avental impecavelmente branco por cima deste (e que eles depois descobriram ser o dono da estalagem) veio ao encontro deles com um amigável sorriso no rosto.
– Sejam bem-vindos ao “Abutre Nevado” o lugar mais alegre de Vallah – disse ele. – Vieram se hospedar ou somente comer?
– Viemos nos hospedar – respondeu Lucca. – Um amigo nos recomendou a sua hospedaria.
– Agradeçam ao seu amigo depois pois não há melhor cama ou melhor comida na cidade inteira do que as que oferecemos aqui, nem no palácio do lorde da cidade. Mas venham, sentem-se, podemos falar dos seus quartos depois que vocês saciarem seu apetite e acreditem, eu sempre sei quando um cliente está com fome.
O dono da estalagem os conduziu para uma mesa redonda num canto perto da cantora e logo a mesa deles se viu tomada por uma grande terrina com javali cozido no molho de hortelã, lebres na brasa, batatas cozidas e costela de boi assada. Pode ser que o título de melhor comida da cidade fosse exagerado mas de fato era uma excelente comida, sem defeito algum.
– E então, satisfeitos? – perguntou o dono da estalagem enquanto puxava uma cadeira e se sentava à mesa. – Aliás, eu não me apresentei, sou Stanley, cozinheiro chefe, maître e orgulhoso proprietário do “Abutre Nevado”.
– Estava tudo ótimo – respondeu Lucca.
– Que bom. Fiquei com medo de que suas companhias não apreciassem carne. Tem muitos elfos que passam por aqui que só gostam de uma saladinha. Não sei como conseguem ficar de pé.
– Defintivamente, eu não sou um desses elfos, meu bom Stanley, esses velhos ossos precisam de uma boa carne para se manterem firmes – respondeu Tauron.
– Hahahaah, eu gostei de você, gostei mesmo – disse o estalajadeiro enquanto dava um tapinha nas costas de Tauron, sem desconfiar que aquele ao seu lado era apenas o segundo mais poderoso rei do continente. – Mas, então, se me permitem a indiscrição, o que traz sulistas como vocês à minha estalagem em pleno começo do inverno? E sim, eu sei de onde vocês são, seu sotaque é único.
– Bem, eu, minha filha, meu genro e minha neta trabalhamos para uma firma de comércio de Arlon e viemos trazer uns documentos para a guilda local, fazer contatos, estabelecer elos comerciais, enfim, comércio – respondeu Tauron com um sorriso mantendo o disfarce que eles haviam combinado antes da viagem.
– Ótimo, comércio traz dinheiro para a cidade e para mim também, é claro, e dinheiro nunca é demais. Vou providenciar os seus quartos e pedir para que um funcionário meu amanhã mostre o caminho para a Guilda. À não ser que vocês tenham pressa e desejem ir hoje mesmo lá.
– Não temos pressa alguma, amanhã está ótimo – respondeu Tauron.
O estalajadeiro já ia se levantando quando Galawel lhe fez uma pergunta que o fez voltar.
– Senhor Stanley, por curiosidade, essa jovem que encanta com sua bela voz é sua escrava?
– Já foi um dia, mocinha, mas hoje eu é que sou escravo dela.
– Hã?
– Ora, minha jovem, todo marido são escravos de sua esposa, como o seu pai pode confirmar – sorriu Stanley – de fato eu a comprei como escrava para trabalhar aqui e cantar, mas eu me apaixonei por ela e ela por mim e, bem, hoje me orgulho de só ter trabalhadores livres na minha estalagem. Agora, se me dá licença tenho que checar a cozinha.
Stanley fez uma reverência às damas presentes à mesa e se retirou.
– Pai?
– Sim, filhota…
– Você é escravo da mamãe?
– Eu não vou falar nada pois tudo o que eu disser pode e será usado contra mim…
Todos na mesa começaram a rir. Mais tarde, à sós, Lucca e Ardriel conversavam em seu quarto. O cavaleiro jazia deitado na cama só de short de pijama enquanto sua esposa trocava de roupa atrás de um biombo.
– Eu ainda acho que deveríamos ter ido hoje mesmo na Guilda.
– Relaxa, amor, não estamos exatamente com pressa e o seu pai estava se divertindo na taverna. É tão raro vê-lo relaxado, sorrindo, ele só fica assim geralmente quando está cercado dos netos.
– Se divertindo até demais, ficando íntimo demais das garçonetes para o meu gosto.
– Opa, você está com ciúmes do seu pai? – riu Lucca.
– Ciúmes? Eu?
– Hahaahahah…. Tá sim e qual o problema de um flerte inocente? Ele é um elfo viuvo, desimpedido. Desde que ele não arranje um filho bastardo, qual o problema? E mesmo que arranjar, a vida é dele, não é mesmo?
– Visto por esse lado, amor, você não deixa de ter razão, realmente, talvez um pouco de “relaxamento” faça bem ao meu pai.
– Viu? E talvez não seja só ele que precise relaxar, querida. Aliás, não entendi por que você está se trocando atrás de um biombo, faz mais de vinte anos que você perdeu o pudor de se trocar na minha frente…
– Não é pudor, só queria fazer uma surpresa….
Dito isso a princesa saiu de trás do biombo usando apenas uma camisola diáfana de seda preta. Lucca ficou admirando a visão. Se ele, desde que chegara à primeira vez em Noritvy, há mais de vinte anos, tinha mudado bastante, estando mais forte, mais largo e, com, segundo a esposa, charmosos fios brancos nas têmporas, ela, por sua vez, não tinha mudado nada. O mesmo cabelo castanho acobreado levemente ondulado, os mesmos olhos escuros, o mesmo rosto de traços finos e refinados, a mesma pele alva e o mesmo corpo que embora fosse curvilíneo era igualmente trabalhado, deixando claro que ela não era uma princesinha que se escondia numa torre, mas uma guerreira acostumada a abrir o seu caminho por conta própria.
– Que tal a minha nova camisola?
– ….
– Ficou tão estranha assim à ponto de você ficar mudo?
– Estranha? Não, pelo contrário, eu já devia estar acostumado, mas sua beleza não cansa de me deixar sem palavras, você não mudou nada desde a primeira vez que a vi.
– Normal, eu sou uma elfa, não? Embora lá na Terra…
– Amor, sem essa de “embora lá na Terra”. Lá você é provavelmente a quarentona mais gostosa do planeta, sem falar que mesmo lá o seu envelhecimento é bem mais lento do que das demais mulheres. Agora vem logo para cama, já está tarde, combinamos de acordar cedo e eu estou doido para descobrir como essa camisola ficará caída no chão…
A elfa sorriu e foi para a cama junto do seu marido.
No dia seguinte, após um farto café da manhã o grupo seguiu, guiado por um funcionário da estalagem, até à sede da guilda de comércio local. O prédio que servia como sede desta era um prédio de três andares, construído junto do porto, um misto de um grande galpão com um prédio de escritórios e contrastava com o resto da cidade: era claro, todo construído em pedras brancas e o grande número de pessoas que entravam e saíam de suas portas e o grande número de carroças que saiam de seu setor de cargas fazia este emanar uma vida, uma sensação de calor humano que eles só tinham visto na hospedaria onde estavam hospedados.
Os comerciantes que entravam e saíam sem parar, como formigas num formigueiro, riam, falavam alto e sorriam, diferente do resto da população da cidade que eles haviam visto quando chegaram no dia anterior. O funcionário da estalagem os levou até à portaria, os apresentou ao funcionário da recepção e foi embora.
– Impressionante o contraste daqui com o resto da cidade – comentou Galawel enquanto eles esperavam ser atendidos por algum funcionário numa sala para onde eles haviam sido levados pelo recepcionista após mostrarem os seus documentos falsos de comerciantes a este.
– Ora, minha neta, eu achava que tu tinhas lido o relatório dos espiões que afirmavam que mais da metade da renda da cidade gira em torno da Guilda de Comércio e das companhias que fazem parte desta, cuja principal é a do Marquês de Dumhar, que vem a ser o presidente da guilda.
– Ler eu li, vô, só não esperava um contraste tão grande. É como se, fora os comerciantes, o resto da população da cidade estivesse vivendo em “modo automático”, mais “sobrevivendo” do que vivendo a vida propriamente dita.
– De fato, filhota, eu tenho a concordar contigo, eu também li os relatórios, vi que, segundo estes, nos últimos anos o Lorde Olifah não tem sido exatamente um bom governante, deixando a cidade em parte largada ao “deus dará”, mas não esperava um ar tão para baixo como o que encontramos.
Antes que mais alguém falasse alguma coisa um funcionário da guilda entrou na sala para anunciar que eles seriam recebidos pelo presidente desta em pessoa e que ele os levaria à sala deste naquele momento.
O funcionário os guiou até uma sala no último andar do prédio, no lado deste voltado para o porto. Deu duas batidas na grande porta dupla e quando uma voz masculina falou para entrar ele abriu esta e fez um gesto para que eles entrassem na sala.
Era uma sala simples, cheia de estantes que se encontravam abarrotadas de livros, papiros e mapas. No fundo desta, em posição oposta à porta havia uma grande janela que permitia ver todo o porto e os navios que neste chegavam ou que deste saiam. Uma grande escrivaninha estava estrategicamente colocada em frente à esta, permitindo que quem se sentasse na poltrona atrás dela pudesse ver tanto a porta quanto a janela, bastando apenas girar sua poltrona.
Por fim, sentado na poltrona se encontrava o presidente da Guilda de Comércio, o Marquês de Dumhar, o homem mais rico daquela cidade e provavelmente um dos dez mais ricos do continente. O marquês era um humano de uns 30-40 anos com cabelos loiros que começavam a ficar grisalhos e olhos azuis escuros, possuía um rosto quadrado como os humanos da região e se não era feio também não era exatamente bonito, possuía apenas um rosto comum. Vestia uma roupa típica de comerciante local, com uma calça escura, botas escuras, uma camisa social branca e uma casaca vermelha com símbolos de oficial da marinha mercante nos braços. Ele fez um gesto para o funcionário se retirar e após este sair da sala se levantou para cumprimentar os recém-chegados.
– Sejam bem-vindos, eu fiz questão de recebê-los pessoalmente quando vi os seus documentos, faz mais de cinquenta anos que a Companhia de Comercio de Swordia não manda um represente para cá. Da última vez eu mesmo não tinha nascido, mas o que são cinquenta anos para elfos e meio elfos? – disse o marquês, com um sorriso típico de um bom comerciante.
– Bem, caro Marquês, para nós elfos, ou, ao menos para mim, cinquenta anos são tão cinquenta anos quanto para ti, que é humano, não é porque eu tenho uma vida mais longa que o tempo passe mais lentamente – respondeu, cordialmente, Tauron.
– É um bom ponto de vista. Diga-me, o proprietário de vossa firma é mesmo o Duque de Swordia, Siegfried Bianchi?
– Sim, ele mesmo, acredite Marquês não existe outro Lorde Siegfried em Arlon que não seja o Duque de Swordia.
– Interessante. Se me permitem um conselho, caso venham fazer negócios com o lorde dessa cidade ou um dos filhos dele não mencione isso. Eles possuem negócios inacabados com o seu patrão há mais um século segundo se conta por aqui na guilda.
– Teremos este conselho em mente, Marquês – agradeceu Tauron.
A conversa entre eles seguiu agradável e se alongou por quase uma hora. Os quatro estavam saindo da Guilda, prontos para tomar o rumo da estalagem quando foram cercados por alguns soldados da cidade armados de lanças e escudos e trajando armaduras liderados por alguém que já era conhecido de Lucca e Galawel: Einek, o susposto comerciante que havia estado em Swordia procurando pela mãe genética de Gala.
Fim da Parte 2
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