Parte 3
– Boa tarde, capitã, ou devo dizer alteza? – sorriu Einek de maneira irônica. – Que bom que resolvestes nos dar o prazer de visitar nossa humilde cidade e ainda acompanhada de sua família. E não tente me enrolar, apesar dos seus espiões me seguindo eu fiz o meu trabalho e consegui levantar toda a sua ficha.
– Boa tarde, Einek, viestes me prender? É proibido fazer turismo por aqui por acaso?
– Hahahaha… Diferente do que vocês do sul pensam, alteza, não somos bárbaros e não, não é crime visitar-nos. Eu só vim trazer um convite do meu patrão, seu avô, Lorde Olifah, governante e senhor dessa cidade. Ele há muito deseja ver a neta e devo dizer que o convite é irrecusável.
Nisto os soldados apontaram as lanças para os quatro.
– Vamos com ele, afinal foi por isso mesmo que viemos, vamos evitar criar uma confusão aqui que possa envolver ver pessoas inocentes – disse Lucca por telepatia ao ver que sua filha já levava a mão à sua espada e que sua esposa já começava a fazer as mãos brilharem como se fosse lançar um feitiço.
As duas damas resolveram seguir a orientação do cavaleiro e os quatro embarcaram no coche indicado por Einek. Este seguiu por uma longa estrada de pedra que os levou até o castelo do Lorde da cidade que ficava numa pequena colina no meio desta. O contraste entre o castelo, com suas paredes sujas, mal-cuidadas e seu poço cheio de um lodo verde nojento onde um dia existira águas cristalinas com a sede da guilda de comércio era gritante. O coche parou num pátio interno e Einek fez sinal para eles descerem e o seguir.
Eles foram conduzidos por um grande corredor de pedra que avançava cada vez mais para dentro do castelo. Os guardas que os escoltavam abriram duas grandes portas que havia no final deste e os conduziram para dentro de um salão
Ainda em silêncio, tentando não criar maiores confusões o grupo seguiu os guardas, que fizeram reverência a uma figura sentada no trono madeira em cima de um tablado no fundo do salão.
Gala, ao ver isso, deduziu logo que aquele era Lorde Olifah, seu suposto avô, mas ele não parecia um elfo, com sua pele cinzenta, seu queixo fino, olheiras embaixo dos olhos e seu nariz curvo ele parecia muito mais uma gárgula ou mesmo um vampiro das histórias que ela gostava de ler quando adolescente.
– Fico feliz que você tenha vindo finalmente me visitar, minha neta – disse num tom irônico Lorde Olifah. – Aliás, Einek, você está dispensado, pode se retirar. Me alegra vê-la com saúde, forte, ao menos o povo do sul cuidou de você direito. Aliás, você se chama Galawel, não é mesmo? Um nome bem bobo, mas exatamente o que eu esperaria de um nome escolhido pela sua mãe, eu conhecia muito bem a minha semente. E você deve estar se perguntando por que eu mandei trazê-la aqui, não é mesmo? Bem, você já é uma adulta, está na hora de você se casar para ajudar sua família. Eu já escolhi um noivo perfeito para você afinal não deves conhecer os costumes do Norte, mas aqui os pais escolhem os maridos de suas filhas, de suas sementes assim como eu escolhi aquele imbecil que acabou casando com a sua mãe e que se mostrou incapaz de cuidar dela fazendo ela ir parar onde parou.
– Bem, Lorde Olifah, se é o costume do Norte o pai escolher o noivo da filha eu já gostaria de deixar claro que, como pai dela, não concordo com nenhum casamento arranjado – disse Lucca, se adiantando.
– Exatamente, nossa filha é livre para casar quando quiser e com quem quiser e não quem o senhor escolher – completou Ardriel.
– Eu não lembro de ter permitido que vocês falassem e no meu castelo só se fala quando eu mando. A senhora não é nada da minha neta, não deve se intrometer e mulheres não devem se meter em negócios de homens, nunca lhe ensinaram isso?
Nesse momento Lucca segurou a mão da esposa e apertou essa de leve, como se pedisse para ela ter paciência pois sabia que provavelmente estava pronta para queimar o governante da cidade vivo.
– E você, rapaz, pode até ser o pai da minha neta, mas eu não aprovei a sua relação com a minha filha, logo você não tem poder algum sobre ela, todo o poder sobre ela a mim pertence. Agora queiram esperar calados, assim que os meus filhos chegarem eu explicarei os detalhes da cerimônia de casamento que ocorrerá daqui há dois dias pois detesto explicar as coisas duas vezes. E, para não pensarem que sou um péssimo anfitrião, mandarei as criadas servirem água para vocês.
Olifah bateu palmas e duas criadas humanas, com grossas coleiras de metal no pescoço, entraram no salão trazendo uma jarra de uma água amarelada e que cheirava à terra. Nenhum dos quatro visitantes se arriscou a prová-la. Não tardou muito e a porta por onde eles haviam entrado tornou a se abrir e duas figuras grandes e disformes entraram e foram se posicionar junto do Lorde.
– Meninos, estávamos esperando por vocês – sorriu o governante – para repassarmos os últimos detalhes da cerimônia de casamento da sobrinha de vocês.
– Tem certeza de que essas coisas deformadas do lado do meu “avô” são elfos? – perguntou Gala para seu pai por telepatia.
– Sim, é isso que dá ficar promovendo sucessivos casamentos consanguíneos – respondeu Lucca, igualmente por telepatia.
– Peraí, pai, vovô e vovó são primos de terceiro grau e você e a minha mãe também são primos em algum grau distante…
– Filhota, como você mesmo disse: meus pais são primos de terceiro grau e mesmo que fossem de primeiro, ainda assim não teria problema, problema ocorre quando acontecem vários casamentos seguidos, como nos Habsburgos Espanhóis…
– Eu lembro disso da aula de história, o último deles era deformado e nem falar direito falava.
– Bingo. Agora tome cuidado com o que você fala sobre os seus “tios”, principalmente sobre aquele de tapa olho, digamos que ele ficou sensível com relação à aparência dele depois que o teu tio Sieg arrancou o olho dele. Vamos ser diplomáticos.
– O tio Sieg fez isso?
– Lembra da confusão entre o Sieg e o Lorde da cidade que o presidente da guilda de comercio mencionou? Então, foi isso, mas isso é uma longa história, vamos deixar para outro dia.
– Ok, ok…
Incomodado com o silêncio dos visitantes, um dos filhos do senhor da fortaleza, justamente aquele que só possuía um olho, jogou o resto da maçã que comia nos pés de Lucca.
– Vem cá, não te deram educação ou esse tapa olho está fazendo você achar que eu sou uma lixeira? – falou Lucca, irritado com a clara provocação. – Se bem que você conseguiu ficar menos feio com esse tapa-olho. Aliás, se você quiser, eu posso terminar o trabalho do meu irmão e te arranjar outro…
– Amor, eu achei que você tinha dito para a nossa filha ser diplomática – falou Ardriel, num tom sério, para o marido.
– Mudei de ideia, afinal eles estão querendo casar a nossa filha na marra sei lá com quem. Resolvi deixar a diplomacia de lado…
– Pensando bem, você está certo, vamos tacar fogo nisso aqui tudo e ir embora….
– Hum-Hum – pigarreou Tauron – Por mais que vossa ideia seja deveras tentadora, minha filha, se possível eu gostaria de uma solução pacífica para este impasse. Meu primo, acho que já ficou claro que esse desenlace proposto não será aceito nem por minha neta nem pelos pais dela…
– Minha neta, você quer dizer, Tauron, afinal ela nasceu da minha semente.
– Ela pode não ter nascido da minha filha, primo, mas a minha filha a adotou quando era criança e pelos nossos costumes filhos adotivos são tão filhos quanto filhos de sangue então sim, ela é minha neta também.
– Você fala em costumes, Tauron, pois bem, pelos nossos costumes aqui nesta região do norte, como eu já disse para o seu genro, as filhas são propriedades dos pais e como eu não consenti com a união que gerou a minha neta, esta também é minha propriedade. E com a minha propriedade eu faço o que quiser.
– Bem, está claro que não chegaremos à um consenso então, já que ela é “vossa propriedade”, quanto queres por ela?
– Pai, estás falando sério? -reagiu Ardriel irritada. – Participar deste circo?
– Estou, minha filha. Viemos aqui em paz e desejo partir em paz. Se tiver que pagar para obter essa paz e garantir que a minha neta não seja mais incomodada, por que não?
– Não que eu esteja disposto a ouvir sua proposta, primo, mas caso eu não a aceite, o que pretendes fazer?
– O que eu farei é partir com a minha família e isto inclui a minha neta, ainda solteira, daqui. Isso não está sob discussão. O que estou apenas oferecendo é uma pequena compensação para evitar mais atritos. E eu recomendo que aceite, se fores tão sábio quando apregoas saberá que o rei de Erdan não é alguém para se ter como inimigo.
– Bravatas! Erdan fica muito longe daqui. Se ainda fostes o rei de Arlon…
– Quer dizer que temes o meu irmão, mas não a mim? Então por que não o consultamos?
Tauron enfiou a mão no bolso e deste tirou um pequeno cristal negro redondo e liso. Este começou a brilhar e logo um holograma do rei de Arlon, Tiron, surgiu. Ele relatou toda a história que o ocorrerá até ali para o irmão e o impasse no qual eles se encontravam.
– Arlon dobrará a oferta feita pelo meu irmão Tauron – sentenciou Tiron. – Galawel é igualmente querida por mim e por minha esposa e é a capitã da minha tropa de elite. Se dinheiro é a chave para a felicidade dela, pois bem, dinheiro terás.
– E se eu não quiser? Arlon declarará guerra a mim? Por causa de uma simples Capitã?
– Galawel é tudo menos uma simples capitã. É um membro querido da minha família e é a terceira na linha sucessória do meu reino, estando apenas atrás da sua mãe e de seu irmão Mikel. E não, não pretendo mobilizar o meu exército, mas, acredite, ela é muito querida por seus subordinados e bastariam eles para tomar o seu castelo. E pode ser que eu faça uma “vista grossa” para tal ato se eles assim o fizerem.
Antes que mais alguém falasse algo um estrondo se ouviu. Galawel arrancara um dos escudos dos soldados do seu “avô” e o jogara contra o chão com raiva, para chamar atenção.
– Chega! Vovô, majestade, fico feliz em vê-los dispostos a gastar dinheiro para me proteger, mas eu sei me virar. E este porco chauvinista que afirma ser meu “proprietário” só entende uma língua: força. Pois bem, eu o desafio: escolha o seu campeão e o mande lutar contra mim, uma mulher, alguém “inferior” aos olhos dos idiotas que aqui habitam. Se eu vencer eu e minha família estaremos livres e o senhor esquecerá que eu existo! Aceitas ou tens medo?
– É claro que eu aceito! Mas se você perder, casará com quem eu escolher.
Ao mesmo tempo, Ardriel conversava por telepatia com o esposo.
– Será que devemos deixar essa luta acontecer?
– Nossa filha nunca perderá, relaxe.
– Numa luta justa? Não, mas não sei se esse conceito existe por aqui.
– Não se preocupe, a Gala voltará para casa conosco, nem que eu tenha que derrubar esse castelo, pedra por pedra, amor. Ela fez esse acordo, eu não. Não sou obrigado a cumpri-lo. Entre a desonra e a felicidade da nossa filha, não preciso dizer o que eu escolho, né?
– Não mesmo, meu amor. E se for necessário, eu lhe ajudarei a derrubar tudo por aqui.
Lucca se adiantou e, olhando sério para o governante da cidade, falou:
– Se você não se opuser, Lorde Olifah, sugiro que marquemos o duelo para amanhã, assim poderá escolher com calma quem irá perder para a minha filha. E se nos dá licença, iremos voltar à nossa estalagem.
– Vocês irão dormir aqui, pois assim terei certeza de que não irão fugir – retrucou o Lorde.
– Isso não irá acontecer, nós temos honra, acredite você ou não. E se você tem medo da nossa fuga, mande o seu cachorro Einek ficar controlando a estalagem. Por fim, lhe deixo um último conselho: – e ao dizer isso Lucca juntou o escudo que sua filha havia jogado no chão e o destruiu com facilidade com as mãos nuas – é bom este duelo ser um duelo limpo ou você e os seus filhos descobrirão na pele que eu sou muito mais perigoso e mais forte do que o meu irmão mais velho.
Após isso os quatro se retiraram do salão sem que ninguém tentasse impedi-los. Mais tarde eles jantavam na estalagem como se nada tivesse ocorrido, tendo só deixado os militares que os haviam acompanhado até Vallah de alerta no lado de fora da Estalagem. Quando se preparavam para se levantar e ir em direção aos seus respectivos quartos foram abordados pelo dono da estalagem, Stanley, que naquele momento trazia um semblante sério e não o tradicional sorriso.
– Majestade, altezas, eu poderia ter um minuto da vossa atenção? E sim eu já sei quem vocês são, as notícias correm rápido aqui se você é bem-informado.
– Se estás preocupado, meu bom Stanley, com eventuais prejuízos que poderás ter com a nossa presença, lhe adianto que a coroa de Erdan cobrirá qualquer prejuízo e ainda lhe recompensará em dobro – falou Tauron.
– Não é isso que me trouxe aqui, majestade, qualquer inimigo do presunçoso Lorde dessa cidade é bem-vindo aqui e eu já avisei os meus funcionários para protegerem ao máximo as suas identidades para que vocês possam descansar. É sobre outro problema que me incomoda, na verdade é mais um boato, mas que eu pensei que talvez vossas altezas tivessem condições de investigar.
– Então por favor, Stanley, nos conte e se tiver nosso alcance, lhe ajudaremos com esse problema – retrucou o rei.
Algumas horas mais tarde Lucca conversava com Ardriel e com seu sogro Tauron sobre uma pequena investigação que ele fizera baseado na conversa que eles tinham tido com Stanley.
– Gala está dormindo? – perguntou Lucca.
– Sim, amor, usei o mesmo truque que usava com ela quando ela era criança e não queria dormir – respondeu Ardriel. Ela vai lutar amanhã, tem que descansar, mas não enrole, nos conte tudo.
Lucca respirou fundo, coçou a cabeça como sempre fazia quando estava sem graça ou incomodado com alguma coisa e falou:
– Infelizmente o boato nos contado pelo Stanley não é boato, é bem real, eles de fato mantêm um harém subterrâneo, quer dizer, um harém não, um harém se pressupõe ter pessoas bem tratada, às vezes mantidas contra à vontade, mas ainda assim bem tratadas, o que não foi o que eu vi. Vi celas imundas, jovens de várias idades, raças e sexos visualmente abusados e maltratados e um cheiro que eu nunca vou me esquecer. Uma mistura envelhecida de sangue, suor, urina, fezes e sêmen que faria qualquer pessoa de estômago mais fraco vomitar. Havia dois guardas lá, pelo que eu fiquei escutando da conversa enquanto eu estava invisível, um era um novato e um veterano. Assim que pude nocauteei o novato e usei um holograma para me passar por ele e conseguir mais informações. Os “três lordes” como o outro guarda chamou Lorde Olifah e seus filhos mantém suas esposas e concubinas oficiais em outra ala do castelo, ali é mesmo só para diversão deles.
– E o que pretendes fazer, meu genro? Afinal sei que não és de ficar de braços cruzados diante de um pesadelo desses.
– Bem, meu sogro, já que perguntas, eu tive que resistir muito ao meu extinto de quebrar tudo por ali e tirar todos de lá, mas não quis atrapalhar a luta da Gala e nem criar confusões diplomáticas. Porém, assim que a luta tiver acabado, pretendo voltar lá.
– Poderias deixar isso aos meus cuidados? Se preocupes com a luta da minha neta e eu resolverei o resto. Faz tempo que desejo viver uma aventura.
– Papai, tens que agir conforme o seu cargo. Sei que a situação dos jovens é muito triste e não acho que devemos virar as costas a eles, mas tens um reino para zelar, não pode se meter em confusões assim sozinho.
– E quem disse que irei sozinho? Falarei com o teu primo Sieg e com a minha filha, tua irmã, Rubi. Pedirei que ambos se teleportem para cá amanhã. Enquanto a luta estiver rolando tu projetaras um holograma meu, fazendo que todos acreditem que estou ali e enquanto isso nós entraremos na tal masmorra e levaremos os jovens embora, teleportaremos eles para Erdan.
– Para Erdan?
– Sim, meu genro, para Erdan. Arlon é muito “perto” daqui, mas Erdan não e Erdan é o meu reino, enquanto eles estiverem aos meus cuidados ninguém poderá tocar neles.
– Bem, é um bom plano, acho que vai dar certo – comentou Lucca.
– Amor, você está de acordo com isso?
– Se o Sieg e a Rubi forem juntos sim, se não, não. Ou você acha que meia dúzia de guardinhas mal treinados são capazes de enfrentar o meu irmão e a tua irmã?
– Sem chance.
– Então, é bom plano, infelizmente os jovens teriam que aguentar o cárcere por mais um dia, mas amanhã serão pessoas livres. Agora sugiro que todos nós descansemos pois amanhã será um dia intenso.
Tauron se retirou para o quarto que dividia com a neta, deixando Lucca e Ardriel sozinhos no quarto. O casal acabou não descansando tanto quanto o cavaleiro imaginava, pois, situações de tensão acabavam tendo um certo efeito afrodisíaco na sua esposa, não que ele se importasse com isso ou achasse ruim.
Fim da Parte 3
Retornar ao menu inicial – Retornar à Parte 2 – Ir para a Parte 4