Ao abrir a porta da sala de casa, voltando da entrega de alguns produtos para alguns clientes locais, Sieg deu de cara com sua sobrinha Galawel, que conversava animadamente com os seus filhos Karlon, Rosa e Jasmin.
– Boa tarde crianças. Aliás, Gala, posso saber o motivo da visita, minha sobrinha? Claro que tu és sempre bem-vinda aqui, mas hoje, num dia de semana, no fim da tarde, bem, não é um dia que eu esperaria ver-te aqui.
– Bem, tio, eu arranjei uma folga das minhas tarefas tanto na Terra quanto em Arlon e eu tava devendo contar os detalhes da minha viagem à Vallah para os meus primos.
– Aliás, pai, a única coisa que não fez sentido até agora é o fato de o senhor ter arrancado o olho do tal feioso tio da Gala – comentou Karlon.
– Tecnicamente eu não arranquei o olho dele, mas sim, ele perdeu o olho numa briga comigo. Mas porque isso não faz sentido para ti, filho?
– O que o Karlon quer dizer, tio, é que é algo que a gente não esperaria vindo de ti, do meu pai até eu esperaria, mas do senhor? Nem pensar.
– Continuo sem entender, Gala, por que faria sentido vindo do teu pai e não de mim?
– Ora, tio, o senhor é o “Mestre Zen” da família enquanto os meus pais são os esquentadinhos. Eu entenderia o meu pai ou a minha mãe caindo na pilha dele e com isso ele perdendo um olho mas o senhor? Isso me espanta.
– Prima, deixa eu defender a tia Ardriel – comentou Rosa. – Tua mãe não arrancaria o olho dele numa briga. Talvez tacar fogo na cara dele ou nas calças dele, como aliás, ela fez, mas arrancar o olho? Não seria muito do feitio da tia Ardriel.
– Rosa, eu não sei bem isso conta como defender a nossa tia, mas eu devo concordar contigo, com o nosso irmão e com a Gala, definitivamente isso não parece coisa do nosso pai – falou Jasmin.
– Eu agradeço o voto de confiança, crianças, mas sim, eu caí na pilha dele e sim, a nossa briga lhe custou um olho e não é algo do qual eu me orgulho.
– Ok, pai, mas agora conta, como ele perdeu o olho? – perguntou Karlon.
– É, conta, mas antes me confirma algo: é verdade que o tal Inus é baixo, corcunda, peludo no corpo, calvo, com dentes tortos e papada dupla, mais parecendo algum experimento mágico que deu errado do que um elfo? – completou Rosa.
– Perfeitamente, minha filha, essa é uma descrição quase perfeita dele e já que insistem, bem, a gente estava numa estalagem, ele me provocou, eu perdi a paciência, parti para dar um soco nele, o “gênio” tentou aparar o meu soco com uma bandeja de madeira, essa rachou e uma lasca voou no olho dele. E pronto, foi assim que aconteceu, satisfeitos?
Os quatro jovens soltaram um “não” em uníssono. Vendo que não conseguiria escapar deles, Sieg foi até a cozinha, preparou uma cuia de erva mate para tomar (que em Arlon é conhecido como “Chá Real”), sentou-se na sua poltrona favorita e se preparou para começar a contar a história que eles tanto queriam ouvir.
Ao ver os filhos e a sobrinha ali, parados, esperando-o começar a história, se viu tomado por um sentimento nostálgico se lembrando de quando os quatro eram crianças e se sentavam no tapete, diante daquela mesma poltrona, esperando ele contar histórias de aventura para eles antes deles se deitarem. Sieg soltou um pigarro, deu uma traga no chimarrão para afastar a nostalgia e começou a falar.
– Essa história aconteceu à cento e cinquenta anos. Na época eu era o campeão de Arlon e também era um membro ativo da Guilda de Aventureiros…
– Era um membro ativo, pai? Pelo que me conste o senhor é até hoje, sendo parte do conselho gestor global dela – interromperia Rosa.
– Eu quis dizer que na época eu era um aventureiro da ativa, Rosa, assumindo missões para a Guilda, coisa que eu não faço mais. Ficou claro? Posso continuar?
– Claro, por favor…
– … Ok, já que eu tive a sua “autorização”, eu vou continuar….
“Na época eu trabalhava em conjunto com a Liliana, a gente ainda não era casado, mas já éramos noivos e morávamos juntos, já nessa mesma casa onde a gente se encontra, só que, na época, ainda não tinha a minha oficina, e com dois amigos: Tsar, um bravo guerreiro anão oriundo do Reino das Montanhas Negras e Nefer, uma ranger negra, extremamente alta, mais alta do que eu e oriunda do extremo sul.
Nefer viera parar trabalhar em Arlon fazendo trabalhos para a Guilda que cada vez a levavam mais ao norte e um belo dia ela veio parar na nossa vila e se encantou por esta, resolvendo estabelecer sua “base” por aqui.
Já Tsar, apesar de ser das Montanhas Negras, odiava morar em cavernas e isso o levou a se mudar para Arlon também. Ele eu conheci num campeonato de queda de braço que, obviamente, eu venci. “
– Pai, eu sei que quem gosta de interromper você é a Rosa, mas eu posso fazer uma pergunta? – falou Jasmin
– Ei! – reclamou Rosa. – Eu não interrompo tanto assim o nosso pai, interrompo?
– Pode sim, filha, faça – respondeu Sieg, ignorando o protesto da outra filha.
– O seu amigo era um anão das Montanhas Negras, certo?
– Sim, foi o que eu disse.
– Ele tomava banho?
– Hahaahahahahhaha… Bem, filha, no início ele não era muito chegado num banho não, mas a sua mãe, irritada com o cheiro que ele tava largando no nosso quarto de hóspedes, o convenceu de um jeitinho bem especial: usou a magia dela para jogá-lo numa tina cheia de água gelada e “deu vida” à uma esponja ensaboada que só parou de esfrega-ló quando toda a craca acumulada no corpo dele por anos saiu.
Os quatro jovens começaram a rir imaginando a cena até porque eles tinham certeza de que Liliana realmente era capaz de fazer isso.
– Querido, desse jeito as crianças vão pensar que eu sou uma déspota… – falou Liliana, rindo, enfiando a cabeça pela porta que separava o cômodo onde eles estavam e o cômodo onde ela se encontrava no momento.
– Que isso, mãe, a gente sabe que tu não és mandona desse jeito, ao mesmo tempo, desculpa, eu consigo imaginar a senhora fazendo isso – comentou Karlon.
– Exato, tia, eu só consigo imaginar duas pessoas da nossa família tendo uma atitude assim: a senhora e o meu pai – completou Gala.
– Tua mãe não, prima? – perguntou Jasmin
– Não, minha mãe ia ameaçar fazer churrasco de anão mesmo e obrigá-lo a entrar na tina por livre e espontânea “vontade”.
– De fato isso seria mais a cara da vossa mãe, sobrinha – concordou Liliana. – Querido, eu vou parar de interromper a sua história para dar um pulo lá na vila para resolver alguns assuntos e entregar alguns remédios. Precisas de alguma coisa de lá?
– Não, amor.
– Ok, então até mais tarde.
Assim que Liliana saiu de casa, não tendo mais distrações, Sieg retomou a história.
“Retomando de onde eu parei, era um dia tranquilo de semana, me lembro como se fosse ontem. Eu recebi ao mesmo tempo uma carta do Palácio Real e uma da Guilda requisitando que eu cumprisse a mesma missão: capturar um grupo de bandidos originários de Vallah e que, fugindo deste, haviam chegado à Arlon criando caos por onde passavam.
Eu estranhei um primeiro momento o pedido uma vez que o meu grupo era mais especializado em caçar monstros, bruxos e explorar masmorras e não caçar bandidos comuns, mas, conforme eu fui lendo a carta, ficou claro porque a missão havia sido entregue para nós.
Em ambas as cartas era mencionado que um grupo de “soldados” da Vallah, comandado por um dos príncipes da cidade, havia partido de lá no encalço deles e estavam fazendo quase tanta confusão quanto o bando de criminosos.
O pedido do Palácio e da Guilda havia fica claro para mim: eles desejavam que o meu grupo capturasse os bandidos o mais rápido possível para não dar tempo para o príncipe de Vallah e seus asseclas causarem caos em Arlon e fugirem da responsabilidade desta, escondidos numa suposta “imunidade diplomática”.
E, bem, eu não preciso dizer quem era o príncipe que liderava o bando, não é mesmo?”
– Tio, desculpa te interromper de novo e prometo que vou tentar não interromper mais, mas eu fiquei curiosa à cerca da formação do grupo de vocês em masmorras. Tanto você quanto seu amigo anão eram guerreiros, certo? Já a tal Nefer era uma ranger e a tia Lili uma maga, não era um grupo meio desequilibrado?
– Não tem problema perguntar, Gala. Sim, o Tsar era um guerreiro como eu, usando um escudo pesado e um martelo de cabo longo. E usando os termos daquele jogo que tu ensinaste aos teus primos, o tal RPG, o Tsar era o “tanker” do grupo, segurando a primeira leva de ataques físicos dos inimigos com o seu escudo. Eu vinha logo atrás, enfrentando os inimigos que passassem por ele, a Nefer vinha atrás de mim, nos dando cobertura com as suas flechas e a sua tia Liliana vinha na retaguarda, oferecendo suporte mágico ao grupo e protegendo essa.
– Pai, eu sei que batalhas não são a minha área, que eu me dedico mais à pesquisa de plantas e preparo de poções, mas essa formação não está meio errada? – questionou Jasmin. – Não seria melhor os três darem cobertura para a mamãe enquanto ela usaria a magia dela para aniquilar qualquer perigo?
– Na teoria sim, filha, mas tens que lembrar que a tua mãe detesta usar a magia dela de maneira agressiva. Ela usa quando é necessário, mas não gosta. Além disso, quando se explora terrenos perigosos como a gente explorava, Jasmin, é sempre bom ter alguém cuidando do suporte do grupo, sendo capaz de ajudar e proteger os membros feridos do grupo, seja com o uso de magias de cura ou com o uso de poções e não havia ninguém no nosso grupo mais capacitado do que a tua mãe para desempenhar esse papel. Nós podíamos lutar com tranquilidade sabendo que ela estava lá pronta para nos proteger de ataques mágicos e para nos curar se fosse necessário.
– Entendi, de fato eu não tinha pensado nisso, talvez devido à minha pouca experiência “em campo”.
– Sem problema, filha, não perguntastes nada demais.
“Voltando à história, embora nós tivéssemos achado um pouco de exagero os relatos que haviam chegado até nós e achado que um simples grupo especializado em rastrear bandidos daria conta, ainda assim não poderíamos recusar um pedido duplo, vindo da Guilda e do Palácio Real.
Não tivemos dificuldade em conseguir informações sobre os dois grupos. Os bandidos, para nossa sorte, já haviam cruzado parte do país estavam agindo na região próxima à Swordia. Não pareciam presos à algum base ou vila em específico, zanzando ali e acolá, mas, ao menos, estavam na nossa região, numa região onde eu conhecia todos os possíveis esconderijos, seria mera questão de tempo para achá-los.
Porém tempo não nos sobrava. O príncipe de Vallah já estava na região, se instalara numa pequena vila vizinha à Swordia e, se valendo da sua suposta “imunidade diplomática”, se comportava como se fosse o dono do lugar. Eu pretendia ignorar isso e me concentrar naqueles que eram, oficialmente, os vilões, mas o prefeito da vila, meu conhecido de anos, me mandara uma carta implorando por ajuda e eu não tinha como deixá-lo na mão.”
– Não tinha mesmo como, pai? Eu sei que o cara era teu amigo, mas não tinha como, sei lá, mandar um pelotão da guarda local para ajudá-lo enquanto vosso grupo cassava os bandidos e resolvia a origem de todo o problema?
– Karlon, essa ideia até passou pela minha cabeça, o Tsar inclusive na época insistiu que fizéssemos isso, mas eu tinha acabado de ser sagrado Duque de Swordia e a vila em questão ficava dentro do território do meu “Ducado” e pelas nossas leis, o Duque deve substituir o rei em situações diplomáticas dentro do seu ducado quando o mesmo não puder estar presente e esse era o caso.
– Eu não tinha me atentado para o fato de que na época o senhor já era Duque, de fato não tinha como o senhor fugir.
– Exatamente, meu filho.
“Não tendo como fugir daquela situação, botei um traje formal, aluguei uma carruagem e, acompanhado da Liliana, da Nefer e do Tsar, rumei para a cidade vizinha. Não foi difícil localizar o príncipe e a sua comitiva. Eles haviam se estalado na melhor estalagem da cidade e estavam causando uma verdadeira balbúrdia nesta.
Não tomando conhecimento do guarda que o Inus havia deixado de plantão na porta desta, entrei no salão e o encontrei semi alcoolizado sentado numa poltrona no meio do salão, como se fosse o rei do lugar, tentando abusar de uma pobre garçonete local.
– Não sei como são as coisas em Vallah mas, aqui em Arlon, nós costumamos ser mais respeitosos com as damas. Por favor, largue-a agora – falei, num tom sério, porém respeitoso.
– Quem é você que vem chegando aqui como se fosse o dono do lugar? Por acaso você sabe com quem está falando?
– Sim, sei, tu és o autointitulado príncipe de Vallah, Inus, nascestes há 45 anos e estás aqui, em tese, caçando um fugitivo vindo da vossa cidade. E eu, realmente, não me apresentei, “alteza” e peço desculpas por esse deslize. Eu sou Siegfried Bianchi, sobrinho dos Reis de Arlon e Duque do Ducado de Swordia, em cujas terras se encontras. Agora, “príncipe” sei que as coisas em Arlon são um pouco diferentes do que em Vallah e talvez tenhas cometido alguns deslizes por causa disso mas minha falecida mãe sempre me ensinou que cabe aos mais velhos guiar os mais jovens então solicito, em prol das boas relações que existem entre Vallah e Arlon, que passes a se comportar como se espera de alguém do seu cargo e que pares de tentar caçar o fugitivo aqui em Arlon pois esse é papel das autoridades locais, que já estão trabalhando no caso.
– Um mero duquezinho não tem o direito de dizer como eu, um príncipe, devo agir, agirei do jeito que eu achar melhor pois é o meu direito, é o direito que a minha imunidade diplomática me garante. E você fala grosso para quem anda por aí acompanhado de duas mulheres e um anão – falou Inus, tentando me provocar.
Eu não respondi, mas Tsar, que dificilmente segurava a língua dentro da boca, sim.
– E você fala grosso para um meio orc, quer dizer, você é um meio orc e não um orc completo, certo?
– Meio orc? Eu achava que anões tinham uma visão perfeita, mas pelo jeito isso é só lenda – respondeu Inus irritado. – Eu sou um elfo puro sangue do Norte!
– Puro sangue estragado né? – falou Nefer, se metendo na discussão. – O Tsar aqui consegue parecer mais um elfo do que você e isso porque ele claramente é um anão.
– Não me lembro de ter autorizado uma mulher a dirigir a palavra a mim. Agora se você se calar, posso pensar em incluir você no meu harém, afinal, apesar da sua língua frouxa, você tem uma aparência decente…
– Seu harém? Eu preferiria me casar com o Tsar do que com você e isso porque eu não gosto de caras mais baixos do que eu….
– Sua mulherzinha insolente, pelo jeito vou ter que lhe disciplinar aqui mesmo.
Vendo que a confusão começava a se instalar e percebendo que começava a ter um acúmulo de mana nas mãos da Liliana, o que indicava que ela estava prestes a lançar um feitiço, eu me meti na discussão e arrastei o meu grupo para fora do prédio, mas, antes de sair, deixei um último recado para Inus:
– Se pelo jeito, apelar para o bom senso não funcionou, “alteza”, irei adotar uma abordagem mais direta e seca, do jeito que pelo jeito gostas: eu estou pouco me lixando para a vossa autoproclamada “imunidade diplomática”. Aqui em Arlon, na ausência do Rei, o Duque, dentro das terras do vosso ducado, é a autoridade máxima e, como eu disse quando eu me apresentei, estás nas terras do meu ducado. A vossa imunidade diplomática só vale enquanto eu quiser que valha e, acredite, a cada minuto ela vale menos e menos. Não ouse me provocar ou eu vou revogá-la e vou “convidá-lo” a se hospedar junto com todo o vosso bando numa das nossas cadeias até que os criminosos estejam sob custódia.
Dito isso, virei as costas e fui embora com os meus companheiros enquanto Inus, profundamente irritado, gritava milhares de palavrões e provocações, colocando até a honra da minha mãe em dúvida.”
– E é por isso que eu disse que o senhor é o Mestre Zen da família, tio, meus pais não teriam aturado tanto. Talvez tentassem uma abordagem diplomática no início, mas tenho quase certeza absoluta de que eles não ignorariam uma ofensa à uma das minhas avós.
– Quase, prima? Eu tenho certeza de que o tio Lucca teria voltado lá, torcido o braço do Inus nas costas e enfiado a cabeça dele numa mesa do salão – comentou Karlon.
– Exagero, meu irmão, acho que o nosso tio só teria enfiado a cabeça dele na mesa, não teria perdido tempo torcendo o braço – falou Rosa.
– Já a tia Ardriel teria tacado fogo nas calças dele, provavelmente – comentou Jasmin.
Sieg começou a rir com os comentários dos jovens e, depois de retomar o fôlego, recomeçou a contar a história.
“Por um certo momento, nós fomos ingênuos de achar que a minha conversa com o Inus tinha surtido algum efeito pois de fato quase não ouvíamos mais falar dele, o que estava sendo bom pois permitia que nós nos concentrássemos na nossa verdadeira missão.
Passamos algo em torno de duas semanas rastreando os fugitivos e um padrão começava a se desenhar aos nossos olhos: as atitudes deles não batiam em nada com os relatos que haviam vindo do norte. Sim, eles haviam machucado alguns soldados e aventureiros que haviam tentado detê-los, tinham feitos alguns pequenos roubos aqui e acolá, mas nada perto do que nos havia sido relatado, pareciam mais um grupo de perseguidos fugindo do que uma grande gangue de arruaceiros.
O nosso conhecimento do terreno foi fundamental e, antes de completar três semanas das buscas, nós conseguimos localizar o bando. Fomos até o local onde eles estavam escondidos acompanhados de um destacamento da guarda local, mas este, ao meu pedido, ficou de sobreaviso perto das ruínas onde eles estavam acampados enquanto o nosso grupo entrou sozinho lá. Minha ideia era evitar um banho de sangue, então achei que essa fosse a melhor medida a se tomar.
Entramos silenciosamente nas ruínas e encontramos os seis membros do grupo sentados em torno de uma fogueira. Pela posição deles em torno desta ficou claro para mim quem era o líder deles.
Atendendo à um gesto meu, Liliana desfez o manto de invisibilidade que nos escondia e os prendeu ao chão com arcos de energia que os seguravam sem machucá-los.
– Boa noite, imagino que saibam por que estamos aqui – falei, me dirigindo principalmente ao líder do grupo. – Eu sou Siegfried Bianchi, Duque do Reino de Arlon e tenho ordens para prendê-los, mas, antes de tudo, eu gostaria de ouvir a vossa história.
– A nossa história? – indagou o líder do bando.
– Sim, a vossa história. Os relatos que chegaram do norte descreviam vosso bando como um bando de carniceiros sangrentos e cruéis, mas não é o que vimos ao longo das semanas que estamos rastreando vós, por isso eu gostaria de ouvir a vossa história, quem sabe isso não possa impactar no vosso futuro? Não posso prometer a liberdade a vós, mas ainda assim quem sabe o vosso futuro não possa ser menos ruim?
– Bem, estamos presos, não é mesmo, então acho que não custa nada eu contar a minha história. Meu nome é Edvard e, um dia, eu fui um próspero comerciante em Vallah. Tinha uma esposa que eu amava, uma filha linda e uma empresa de comércio de porte médio, mas próspera. Sempre me esforcei para ser um bom patrão e pagar salários justos aos meus funcionários. E a minha vida seguia em paz até o dia que a praga chamada Inus cruzou o caminho dela. O príncipe se encantou pela minha filha e não sossegou até conseguir levá-la para o seu harém. Eu já havia ouvido falar mal deste, mas a realidade era bem pior. Minha filha não aguentou e, seis meses depois, se enforcou, grávida, dizendo que preferia morrer a trazer ao mundo um filho do monstro que a estuprava todas as noites. Minha esposa, desgostosa, acabou morrendo de tristeza. Eu procurei a justiça de Vallah, apelei até o senhor da cidade e não consegui justiça, só consegui ser surrado e ter meus negócios tomados pelo governo da cidade. Junto de poucos funcionários fiéis, eu comecei a lutar por justiça, comecei a tentar fazer justiça com as próprias mãos, mas até nisso eu fracassei. Nos vimos obrigados a fugir e, confesso, no caminho aproveitamos para roubar nobres corruptos que cruzaram o nosso caminho, mas sem nunca manter o dinheiro conosco, sempre dando ele para os miseráveis. Ao chegar aqui, em Arlon, esperávamos manter esse ritmo, mas o que encontramos aqui nos impressionou: encontramos um reino pacífico, com um povo feliz. Há pobres aqui? Sim, infelizmente existem em todos os lugares, mas também há justiça aqui, existem governantes justos. Por isso, aqui, não cometemos os nossos atos tradicionais de roubo.
Eu olhei para Liliana e ela, com um aceno de cabeça, me confirmou que tudo que ele havia dito até lá era cem por cento verdade.
– Eu acredito em ti, quer dizer, Edvard, minha companheira acredita e, acredite, ninguém consegue mentir para ela. Eu adoraria poder lhe deixar partir, porém, infelizmente, eu não posso, mas posso lhe propor um acordo.
– Um acordo?
– Entreguem-se a mim, entreguem-se à justiça do Reino de Arlon. Eu farei que vós sejais julgados apenas pelos crimes cometidos aqui em Arlon, crimes pequenos, que provavelmente lhe renderão apenas penas alternativas para serem cumpridas e depois vós todos sereis homens livres, ao menos enquanto estiverem dentro das terras de Arlon. Temos um acordo?
Após eu falar isso eu estendi a minha mão para Edvard para que ele pudesse aperta-lá e Liliana, ao meu pedido, soltou as amarras mágicas dele.
– Bem, a pior a cadeia do seu reino deve ser melhor do que o que nos espera lá em Vallah. Então, sim, temos um acordo – respondeu ele enquanto apertava a minha mão.
Edvard caminhava em direção aos seus companheiros, que também tinham sido soltos pela Liliana quando uma flecha o acertou bem no peito.
Rapidamente Liliana criou um campo de força em torno de todos nós e Nefer, Tsar e os homens dele fizeram um círculo protetor em torno mim enquanto eu tentava salvar a vida dele, sem muito sucesso.
– Por favor, mantenha a sua promessa para os meus homens – foi a última coisa que ele me disse ao suspirar.
Ao ver a seta que o havia atingido eu já tinha certeza de quem era o autor de tal ato covarde, mas ainda assim o autor não demorou a se revelar.
Inus saiu do bosque que havia perto faz ruínas acompanhado dos seus homens.
– Essa é a famosa justiça do sul? Que faz acordo com um bando de bandoleiros? Justiça de frouxos – falou ele. – Agora, “Duque Barbicha”, seja obediente e me entregue o resto do bando, à não ser que queira testemunhar um banho de sangue.
– Boa sorte tentando capturá-los, “alteza trolesca” – respondeu Tsar no meu lugar.
Obviamente que Inus não ia ficar calado diante de tal ofensa e tentou avançar na nossa direção, só para dar de cara no campo de força invisível que nos protegia.
Ele e seus homens ainda tentaram atacar o campo de força, mas logo se viram presos pelas mesmas amarras de energia que antes prendiam o grupo do Edvard.
Escoltados pela guarda local, que havia sido chamada pela Nefer usando um código previamente combinado, fomos embora deixando os homens de Vallah ainda presos nas ruínas.
– Nós vamos simplesmente deixar eles soltos, Sieg? – me pergunto Nefer no meio do caminho.
– O que podemos fazer, Nefer? O mandato da Guilda falava em capturar Edvard e seus homens vivos ou mortos. Inus foi um escroto covarde, mas não fez nada ilegal. Por mais que me incomode, não posso fazer nada contra ele, ao menos não com relação à morte do Edvard.
Duas semanas haviam se passado, eu estava numa taberna na vila vizinha, conversando com o meu amigo que era o prefeito local, acompanhado do Tsar e da Nefer quando Inus e seu bando entraram lá. Eu sabia que ele ainda estava na região, tentando inutilmente conseguir extraditar o resto do bando do Edvard para Vallah mas tinha esperança de não cruzar mais com ele.
Aparentemente eles não nos viram, uma vez que estávamos sentados junto de uma mesa no canto do salão, e se dirigiram para uma enorme mesa no centro deste.
A minha ideia originalmente era ignorá-los, mas, infelizmente, eles começaram a falar cada vez mais alto e eu não consegui fingir que não estava ouvindo o que eles falavam.
– A petulância daquele “Duque Barbicha” é algo que eu nunca conseguirei engolir. Como um mero duque, um elfo impuro, tem a pachorra de falar do jeito que falou comigo, um príncipe elfico puro sangue?
– Ele só é petulante porque se esconde atrás daquela aberração que viaja com ele, chefe, a tal noiva dele – comentou um dos capangas.
– De fato uma aberração, mas não é toda feia não, eu arranjaria um lugar para ela no meu harém com facilidade e ensinaria ela a se comportar direito. A ela e a àquela arqueira negra que anda com eles – retrucou Inus.
Ao ouvir ele falar essas palavras sobre o amor da minha vida, crianças, o “sangue italiano” dos Bianchi falou mais alto.
– Com licença, mas eu preciso ter uma conversa com o príncipe – falei para os meus companheiros de mesa.
– Sieg, calma, não se baixe ao nível deles – tentou contemporizar Tsar.
E é aquela história, criançada, quando o anão fanfarrão do grupo é a voz da razão, é porque a situação está braba.
Eu retruquei que eu apenas ia ter uma conversa diplomática com o Inus mas, ao ver o estado que estava a caneca de ferro que eu estava segurando, ou melhor, a “ex caneca”, Tsar não pensou duas vezes:
– Nefer, corre e vai chamar a Liliana, senhor prefeito, busque a guarda local.
– Tsar, não é melhor eu ficar também?
– Por favor, Nefer, não discute comigo, não desta vez, só chama a Lili, quando o Sieg tá puto desse jeito, só ela segura ele.
Os dois fizeram o que ele pedira e ele correu para me alcançar, para tentar me impedir de fazer alguma bobagem.”
– A partir daqui crianças, parte do que eu vou contar me foi contado na verdade pelo Tsar porque, acreditem, eu estava tão irritado que não lembro de ter dito parte do que eu disse naquele dia.
“Tsar me alcançou justamente quando eu estava começando a falar com Inus, que levantara e estava me encarando como se deixasse claro que não me temia de maneira alguma.
– Vejo que ainda estás aproveitando a hospitalidade arloniana, alteza, o que me espanta, uma vez que todos os seus apelos diante de nossa justiça falharam. Eu sei que já fui claro antes, mas minha falecida mãe sempre me ensinou a ter paciência com crianças mal-educadas e, bem, diante de mim, que já passei dos oito séculos de idade, não passas de uma criança, então lhe deixarei um pedido e um conselho e prometo que não irei dirigir a palavra mais à ti. Primeiro, o pedido: vá embora de Arlon, não tens mais negócios a tratar aqui. E, por fim, o conselho: nunca, nunca mais ofenda a minha noiva, chamando-a de aberração e dizendo que vai “enfiá-la” no seu harém. Liliana é o que eu tenho de mais sagrado na minha vida, qualquer ofensa a ela é uma ofensa à mim e, se fosses daqui, saberias que ofender um Bianchi não é algo saudável.
– Quanto ao seu pedido, eu sou um príncipe, filho do monarca da mais poderosa cidade do norte, eu vou aonde eu quiser e não devo satisfação a ninguém. Agora, quanto ao seu conselho, bem, ações valem muito mais do que palavras de onde eu venho…
Após dizer isso, Inus jogou o conteúdo da sua taça na minha cara e fez como se fosse embora. Segundo Tsar, que, de fora da discussão, conseguia ter uma visão melhor do que ocorria, ele fez tudo de propósito para me irritar pois, após esvaziar a taça na minha face e começar a dar as costas para mim, como se fosse embora, prontamente ele levou uma das mãos ao cabo da faca que ele levava na cintura e a outra já foi segurando a borda da bandeja de madeira que a garçonete havia deixado em cima da mesa dele.
Hoje, calmamente, analisando a cena, para mim fica claro qual era a ideia dele: ele esperava que eu surtasse e tentasse agredi-lo. Ele apararia o ataque com a bandeja e com a outra mão me esfaquearia, alegando legítima defesa. E, claro, se eu não tentasse agredi-lo, para ele não faria diferença afinal ele já teria conseguido me humilhar na frente dos seus homens e reafirmado o seu poder diante deles, o que era provavelmente a sua meta, afinal ele não poderia se permitir ser humilhado por um “mero duquezinho”.
Acontece que, se eu tivera o trabalho de “estudá-lo”, de recolher informações sobre ele, a recíproca com certeza não era verdadeira pois qualquer um que me conhecesse saberia que uma mera bandeja de madeira não serviria de proteção alguma como, de fato, não protegeu.
Tendo perdido totalmente a paciência, eu fechei o meu punho e dei um soco no Inus, não com a minha força total, o que, provavelmente, poderia ter matado ele, mas com força o suficiente para espatifar a bandeja e acertar a cara dele em cheio, arremessando-o longe. A bandeja foi reduzida a lascas de madeira, sendo que uma dessas se alojou bem no olho direito dele.
Pensando na confusão que poderia surgir, Tsar se colocou entre mim e o bando do Inus, já com o seu imenso martelo de guerra em mãos, martelo esse que ele geralmente levava miniaturizado preso numa corrente em torno do pescoço como se fosse um pingente, mas o meu bravo amigo não precisou entrar em confronto com eles.
Antes que qualquer um se movesse, uma flecha cortou o ar, tirando um fino do rosto do capanga que se encontrava mais à frente e anunciando que Nefer havia retornado junto com a Liliana, o prefeito e a guarda local.
Liliana me arrastou pelo braço, me levando para um campo para me acalmar enquanto o prefeito cercava a “comitiva” do Inus com a guarda local.”
– Desculpa lhe interromper, pai, mas como a mamãe fez para calmar-te?
– Ora, filho, como ela sempre faz, me abraçando, me dando uma bronca e no fim e me beijando na boca.
“Finalmente eu me acalmei e fui para junto do prefeito e do capitão da guarda.
– O que devemos fazer com ele, milorde? – perguntou o prefeito, dando ênfase à última palavra, como se deixasse claro que naquele momento ele esperava uma resposta não vindo do seu amigo e companheiro de bar Sieg, mas de Siegfried Bianchi, Duque de Swordia e senhor da região.
– Capitão, a auto-proclamada imunidade diplomática do príncipe Inus e dos seus servos está, à partir de agora, revogada por mim, prenda-os por arruaça e use da força se for necessário – respondi.
O capitão da guarda, que já vinha aturando a bagunça de Inus na região há algumas semanas não se deu ao trabalho de esconder o sorriso em seu rosto e, com a ajuda dos seus homens, que superavam os homens do Inus numa proporção de pouco mais de 3 para 1, os levou algemados. Liliana, mostrando a bondade que tem em seu coração, ainda se ofereceu para fazer uma magia de cura no olho do Inus, tentando preservar este, mas ele cuspiu no chão, na frente dela, dizendo que preferia ficar cego à recorrer à ajuda de uma bruxa e, de fato cego ele ficou.
Eles ficaram presos por quase um mês e finalmente foram libertados, tendo sido condenados pela justiça arloniana a cumprirem penas alternativas na sua cidade de origem e sendo banidos do reino por duzentos anos.
Esta foi a minha última grande missão em nome da Guilda, um pouco preocupado e um pouco envergonhado com a minha perda de controle eu fui me afastando lentamente desta, me dedicando aos meus deveres com Duque e como campeão de Arlon e aproveitando para apreciar mais a vida ao lado da Liliana. Um ano depois desse incidente, aliás, nós oficialmente nos casamos.”
– Bem, crianças, foi assim que eu deixei o Inus cego de um olho. Contentes agora?
– Muito melhor agora, pai, mas ainda acho que esse feioso se deu bem no final, deveria ter ficado mofando na cadeia por mais tempo, sem falar de que eu duvido de que ele tenha cumprido qualquer pena lá na cidade dele.
– Eu entendo o seu raciocínio, Rosa, mas era a maior pena que podíamos aplicar neles pelo crime de arruaça sem nos arriscar a criar um problema diplomático. Por mais que Vallah, já naquela época, não fosse a cidade mais poderosa do norte como o Inus falara, ainda assim não valia à pena criar uma confusão por causa disso.
– Tio, você falou em vergonha por causa do que você fez, mas você não foi um pouco duro consigo mesmo? Afinal tenho certeza de que meus pais não teriam agido muito diferente não. Aliás, por falar neles, eles já conheciam toda essa história antes da gente ir para Vallah, né? Por isso que o meu pai já chegou lá de má vontade com o Inus, não é mesmo?
– Perfeitamente, Gala, seus pais já conheciam toda a história e ambos falaram para mim que de fato eu sou duro demais comigo mesmo quando falo em vergonha, aliás os dois frisaram que eles já não teriam aguentado na primeira vez que o Inus me provocou, falando mal da minha mãe.
– Pai, já que entrastes no assunto, por acaso o tio e a tia falaram o que eles teriam feito com o Inus? Por acaso chegamos perto de acertar? – perguntou Jasmin.
– Digamos que vós acertastes 50% do palpite. Meu irmão disse que teria feito uma plástica na cara do Inus usando a mesa mais próxima como bisturi, então vós acertastes quando disseram que ele enfiaria a cara do Inus numa mesa. Já a minha querida cunhada, por mais que seja famosa por tacar fogo na calça de caras abusados, disse que, em nome da diplomacia, ela teria sido mais sútil e apenas induzido queimaduras de primeiro e segundo grau na língua do Inus para ele ficar algum tempo incapaz de falar mal da mãe dos outros.
– E isso é sútil aonde? – retrucou Rosa.
– Depende, prima, se ninguém visse a minha mãe conjurar a magia, bem teria sido algo sútil.
– Pai, posso fazer uma pergunta? Prometo que vai ser a última.
– Faça, Karlon e não precisa ser a última não, podem perguntar o que quiserem.
– Que fim levou o Tsar e a Nefer? Considerando o tempo que já se passou, imagino que os dois já tenham falecidos, mas antes disso, o que aconteceu com eles? Continuaram se aventurando sem a mamãe e sem ti?
– Os dois continuaram a se aventurar juntos, filho, apesar de viverem implicando um com o outro e, por fim, apesar da Nefer sempre ter dito que não gostava de caras baixinhos, acabaram se casando e montando um açougue e restaurante de carnes exóticas aqui em Swordia. Aliás, vós quatro conheceis o filho caçula deles, o Hactor, o meio anão negro idoso que é o dono do Javali Banguela, que vem a ser o negócio que os pais dele criaram.
– O velho Hactor é filho deles? Quem diria! – reagiu com espanto Karlon.
– Por isso é que ele te chama de tio, pai? – perguntou Jasmin.
– Exato, filha, eu vi ele e os irmãos dele crescerem, aliás, eu e a tua mãe ajudamos no parto dos cinco filhos que a Nefer teve com o Tsar.
– E o que aconteceu com os homens do Edvard, pai? Mantivestes o acordo?
– Ora, por quem me tomas, Rosa? É óbvio que eu mantive, eles foram condenados a penas pequenas, leves e depois foram soltos, ficando livres para viver aqui em Arlon caso quisessem. Só um deles não quis, o segundo em comando do Edvard, que, de posse de uma carta de referência minha, foi trabalhar numa empresa de comércio num porto no sul de Erdan, pois, segundo ele, ele queria ficar o mais distante possível de Vallah. Nós continuamos nos correspondendo e por carta eu soube que ele se casou e teve uma filha que batizou de Edvarda.
– Edvarda? Pobre criança – comentou Rosa.
– Haahahahahahhah… Agora, garotos, pensando bem, se não tem mais enjuga pergunta, é melhor pararmos por aqui pois eu tenho que ir para a cozinha uma vez que hoje a janta é por minha conta e vós sabeis bem como a Liliana fica quando está com fome…
Os quatro jovens riram diante do comentário do elfo.
– Aliás, Gala, ficas para jantar conosco?
– Seria um prazer, tio.
Extra: clique aqui para ver uma ilustração do Sieg e dos seus companheiros feita por mim no Fabrica de Heróis.