O Bosque Branco

Parte 4

Dois dias depois, Jasmin, sentada numa confortável cadeira de balanço feita toda de madeira branca e palha trançada, tricotava um cachecol verde usando linha e agulhas que lhe haviam sido fornecidas pela criada que o Ancião Mor designara para lhe servir.

A jovem havia sido posta em prisão domiciliar por ele, ficando presa numa casa reservada tradicionalmente para hóspedes importantes, ficando a muitos metros do chão, e construída para oferecer o maior conforto possível para seu ocupante, contando com uma sala ampla e aconchegante com uma lareira central, sala na qual Jasmin se encontrava no momento, um quarto com uma grande cama com colchão feito de penas de cisne, um banheiro amplo e bem confortável e até uma pequena cozinha.

Na sala, além da cadeira onde a elfa se instalara para tricotar, havia também uma mesa redonda com quatro cadeiras e um sofá largo e confortável. Jogado sobre este estava um belo vestido branco com bordados feitos de fios de prata e ouro. Era o vestido que Jasmin deveria usar na cerimônia que a introduziria como a nova sacerdotisa e que o Ancião deixara lá para ela experimentar, mas a jovem não tocara neste desde então.

Outra pessoa no seu lugar talvez já estivesse ansiosa, mas Jasmin confiava na sua família e sabia que eles iriam vir buscá-la, mais cedo ou mais tarde e, assim, ela continuava o seu passatempo de tricotar enquanto assobiava a canção de abertura de um “anime” antigo que sua prima Galawel a fizera assistir.

A porta da casa se abriu e o Ancião Mor entrou sem mesmo se anunciar ou pedir licença, deixando claro que Jasmin não era uma convidada de honra ali, mas uma prisioneira.

– Vejo que ainda não experimentaste o vestido, minha jovem. Aliás, nem se destes ao trabalho de tirá-lo de onde eu o deixei.

– E eu já disse a vós, vossa excelência, que perdes o vosso tempo ao planejar tal cerimônia. Minha família virá me buscar – respondeu Jasmin, mantendo a educação e a polidez ao falar com o Ancião, apesar de toda a situação na qual ela se encontrava.

– Tens fé mesmo nos vossos e eu admiro isso. Mas duvido que o Rei de Arlon deseje entrar em conflito conosco por causa da sobrinha neta da esposa dele.

– Não é ao rei que me refiro quando falo em família embora, ao ser casado com a minha tia avó de fato ele seja parte da família mas aos Bianchi, à família do meu pai.

– Ah, sim, à família que jogou o legado do grande Antigon no lixo lá nas distantes terras sul. Eu não teria muita fé neles.

– Cada um tem fé naquilo que quer, excelência. Agora, se me dás licença, creio que a criada já preparou o meu banho – retrucou Jasmin, se controlando para não dar uma resposta grosseira.

A jovem se levantou em direção ao banheiro enquanto o Ancião ia embora pela mesma porta que entrara.

No dia seguinte a cena se repetiu: o Ancião veio convencer Jasmin do seu suposto destino enquanto essa impassivelmente tricotava.

– Tens muita fé mesmo na vossa família, mocinha….

– E por que eu não deveria ter? Só porque aos seus olhos eles jogaram o legado de Antigon no lixo? Pois não é assim que vejo.

– E como vês? Me deixastes curioso agora.

– Ótimo, como diria o meu tio Lukhz, curiosidade é o primeiro caminho para aprender coisas novas.

– Curioso saber que um homem com fama de simples e bruto fala tal coisa.

– Sabia que mais cedo ou mais tarde chegaríamos na fama dele, mas se me permites, responderei a sua pergunta antes.

– Claro que permito.

– De fato o “Rei Maldito”, o último rei de Sudher, o reino que surgiu a partir da Aliança comandado pelo grande Antigon, era um Bianchi e de fato seus atos nefastos levaram ao fim do Reino. Mas Bianchi também era o meu avô Beppe, um dos comandantes do exército unificado que combateu a ameaça do Rei Maldito. Bianchi também era o grande Genarion Bianchi, neto de Antigon e responsável por executar o “Rei Maldito” e que por séculos viajou pelas estradas desse continente sempre lutando pelos mais fracos e protegendo aqueles que necessitavam, honrando os ideais que eram pregados por Antigon, de que os fortes deveriam ajudar os fracos na necessidade e que éramos todos irmãos, independente da espécie ou cor de pele. Bianchi também é Ahmawen, a Rainha de Arlon, minha tia avó, conhecida como uma das damas mais caridosas deste mundo, que tem dedicado a vida a ajudar os pobres. E a sua falecida irmã, Ahmadriel, falecida rainha de Erdan também dedicou sua vida a ajudar o próximo em vida. Pois bem, meu caro Ancião, vós vês os Bianchis, a minha família, como fracassados, mas eu vejo como pessoas que se esforçam diariamente para manter vivo o legado de paz que Antigon deixou.

– Tens um ponto, minha jovem, tem um ponto. Mas cadê essa família então que não veio lhe buscar até agora?

– Ora, vossa excelência, deveis saber que o ritual para aprisionar os gafanhotos leva alguns dias para ser preparado. Além disso, creio que posso contar isso a ti, a ideia de meus pais e meus tios era tentar separar os gafanhotos em grupos espaçados e sela-los em lugares diferentes para garantir que, se amanhã ou depois o selo se quebrar, só parte da horda de gafanhotos seja solta e não toda.

– Uma ideia deveras criativas. Só falta dizer-me que foi vosso tio que a traçou.

– Não, na verdade foi o meu pai, ele é o estrategista da família, mas já que retomastes o assunto, como afinal vês o meu tio Lukhz? Qual a imagem dele que chegou em vosso bosque?

– De um homem simples, que se veste simples, de poucas palavras e, possivelmente, de pouca erudição, visto que se mantém quase sempre calado em eventos públicos e, quando fala, nas maiorias das vezes, é fazendo intervenções grosseiras.

– Tens conversado com as pessoas erradas, pelo jeito, Ancião. De fato, o meu tio é um homem que se veste de maneira simples e de hábitos discretos. Mas de pouca erudição? Qualquer pessoa que tenha conversado por meia hora com o meu tio sabe que isso não é verdade. Meu tio é um grande curandeiro, um excelente lutador, fala vários idiomas, é um apreciador de música, pinturas, esculturas, literatura e outras formas de arte. Podeis chamá-lo de tudo, mas nunca podereis dizer que ele tem pouca erudição. E sim, ele se mantém calado na maioria das cerimônias públicas, mas isso se dá por dois motivos: ele não tem paciência para lidar com bajuladores e, bem, deves imaginar que minha tia, devido ao cargo dela, vive infelizmente cercada de bajuladores e parasitas tentando se dar bem. E o segundo motivo é o chauvinismo dos nobres. Muitos nobres já questionam a posição da minha tia como herdeira das coroas de Arlon e Erdan só pelo fato dela ser mulher. Agora, imagine só se o meu tio começasse a se meter publicamente nos assuntos que dizem respeito ao cargo dela? Ai mesmo que os detratores da minha tia iam acusa-la de ser indigna do cargo, de ser um fantoche do marido. Pelo bem da minha tia e por amor a ela ele optou por se dedicar a cuidar dos filhos deles, meus primos, permitindo a ela a se dedicar aos encargos de princesa sem maiores preocupações.

– Visto por este lado, minha jovem, creio que o vosso tio está correto. Como esposo o dever dele é apoiar vossa tia da melhor maneira possível e, se para ele, esta é a melhor maneira, então ele deve continuar agindo assim.

– Me permites a ousadia de dar um conselho, vossa excelência?

– Tens minha permissão, diante da sua maneira educada de falar e agir.

– O senhor precisa sair mais do vosso Bosque, ver mais o mundo com vossos olhos e não acreditar somente no que lhe contam.

O velho Ancião teve uma atitude inesperada para Jasmin diante do conselho dela: ele começou a rir. Ao terminar de rir disse que tinha que se retirar, mas que voltaria no máximo no dia seguinte para retomar a conversa deles.

Como dito, o Ancião de fato retornou no dia seguinte e encontrou Jasmin tricotando agora um cachecol azul, já tendo terminado o verde, que se encontrava dobrado em cima de uma cesta, do lado da cadeira onde ela estava sentada a tricotar. O velho elfo se agachou, examinou os pontos do cachecol por algum tempo e depois disso falou:

– Belos pontos, firmes, um trabalho bem-feito para algo feito tão rapidamente.

– Obrigada, aprendi com a minha mãe, que, por sua vez, aprendeu com a mãe dela, minha avó.

– Bem que eu achei a técnica deveras familiar. Posso lhe propor um acordo, minha jovem?

– Um acordo?

– Sim, eu não tocarei no assunto da cerimônia no dia de hoje e, em troca, me falarás sobre vossa família, sobre vossos pais e vossa irmã.

– Eu tenho um irmão também. E, se me desculpas a indiscrição, por que desejas saber mais sobre a minha família?

– Um irmão? Curioso isso e, respondendo à sua pergunta: porque vossa família também é minha, uma vez que vossa avó era minha sobrinha, filha do meu falecido irmão. Então, temos um acordo?

– Temos, mas com uma condição: o senhor me falará depois da vida dos meus avós aqui no Bosque. Eu não cheguei a conhecê-los e eles pouco falavam desta para a minha mãe.

– Se esta é a sua condição, então temos um acordo fechado.

O Ancião se sentou no sofá, no mesmo onde o vestido cerimonial ficara jogado nos dias anteriores (e que não se encontrava mais lá pois Jasmin pedira para a criada guardá-lo no guarda roupa do quarto) e ficou aguardando a jovem guardar as agulhas de tricô e começar a falar sobre os seus pais.

“Bem, como deveis saber, meu pai é um Duque. Mas isso não significa que ele tenha crescido em um berço de ouro, paparicado ou mesmo que eu e meus irmãos tenhamos crescidos sendo paparicados, muito pelo contrário, nossos pais sempre quiserem nos mostrar o valor do trabalho e de uma vida honesta.

Meu pai é filho de Beppe Bianchi, general que lutou na guerra contra o “rei louco” de Sudher e de Cindaria, irmã da Rainha de Arlon e sobrinha do “rei louco”. Foi durante a guerra que eles se conheceram e começaram a namorar. Ao fim da guerra meu avô, triste e desgostoso com tudo que havia passado, decidiu voltar para a terra distante da qual ele viera. Minha avó, que já estava grávida, sabia que se contasse a verdade sobre a gravidez ele ficaria, mas ela desejava que ele ficasse por amor à ela e não ao bebê e, assim, ocultou a verdade.

Não posso dizer que crescer sem pai não tenha feito falta ao meu pai, mas sei que a minha avó fez questão de criá-lo da melhor maneira possível. Meu pai nasceu e passou sua infância na cidade de Arlon e frequentemente ia até o castelo real, pois, afinal, era sobrinho dos reis e, na prática, o Rei Tiron acabou sendo uma figura paterna para ele, por isso o grande respeito que o meu pai tem até hoje para com o rei.

O sangue aventureiro que o meu pai herdara tanto do meu avô quanto da minha avó acabou por falar mais alto e o meu pai virou um aventureiro, viajando para cima e para baixo ajudando quem precisava, fazendo serviços para o Rei e servindo como campeão do Reino por muitos e muitos anos. Aliás, ele foi a pessoa que por mais tempo ocupou o cargo de “Campeão do Reino de Arlon” na história, cargo este que lhe dava status de general diante das tropas do reino. E quando a Guilda de Aventureiros chegou em Arlon, ele ajudou a fortalecer esta, vendo que seria um bom mecanismo para direcionar os aventureiros no rumo certo e que seria útil ajudar aqueles que precisam.

 Foi numa dessas aventuras que meu pai conheceu minha mãe e ambos contam que foi amor à primeira vista. Eles passaram a se aventurar juntos, às vezes só os dois, às vezes junto com outros companheiros. Mas é óbvio que eles não desejavam viver na estrada para o resto das suas vidas e logo foram pensando num plano de aposentadoria.

Eles compraram um terreno de bom tamanho em Swordia, uma vila no oeste de Arlon que, casualmente, havia sido fundada pelo meu avô paterno e lá construíram a casa onde até hoje vivem, uma grande casa de um andar, com paredes caiadas de branco, uma pequena oficina na frente, onde meu pai trabalha como ferreiro e um grande pomar nos fundos onde minha mãe planta frutas, hortaliças e ervas medicinais.

Minha mãe, por sua vez, também teve uma criação simples, mas repleta de amor. Ela nasceu e cresceu na Vila de Marik, à beira do Grande Rio, perto da cidade de Arlon. Ela foi educada na magia por sua mãe e nos conhecimentos do campo por seu pai. Quando estes faleceram, quando ela tinha por volta de vinte e seis anos, ela resolveu partir, conhecer o “grande mundo que havia por aí” como os seus pais sempre falavam para fazer. E foi viajando, trabalhando como curandeira, herbalista e boticária itinerante que ela veio a conhecer o meu pai e, como eu já disse antes, foi um amor à primeira vista.

Por ser de uma vila pequena é que ela aceitou de cara a ideia do meu pai de irem morar em Swordia quando cansassem da vida na estrada. Os dois trabalharam muito, juntaram muito dinheiro e, finalmente foram se retirar.

Os dois não precisavam trabalhar mais quando se aposentaram da vida de aventuras, mas tão pouco conseguiam ficar parados e passaram a trabalhar para ajudar a pequena vila a se desenvolver. Foram por anos os parteiros da cidade, com o meu pai brincando que se sente pai de meia vila. Meu pai também é até hoje o principal ferreiro, fazendo de tudo, desde armas e ancinhos até consertando panelas velhas. Minha mãe foi a primeira professora da cidade, se esforçando para acabar com o analfabetismo desta e treinando outras professoras para lhe suceder. Hoje vive como a médica da cidade, embora ela reconheça que o meu tio, irmão caçula do meu pai, seja um curandeiro melhor, e como a farmacêutica da cidade, preparando poções, xaropes e remédios para ajudar os pobres.

A vida deles só sofreu um pequeno abalo quando o rei decidiu nomear meu pai Duque. Meu pai não desejava, nunca quisera cargos ou títulos, porém tão pouco conseguia dizer não ao rei, que sempre lhe tratara bem na infância. E entendia a intenção do rei: este precisava de alguém de confiança para supervisionar o oeste, que era uma das regiões menos desenvolvidas do reino. Ele só impôs duas condições, que foram plenamente aceitas pelo Rei: ele continuaria a morar onde morou, com Swordia se tornando a capital do Ducado, por assim dizer e a porcentagem dos impostos às quais ele teria direito como Duque seriam reinvestidas em obras para beneficiar a região e na segurança desta. Ele não precisava do dinheiro dos impostos e fazia questão de não ficar com nenhum centavo destes.

Como eu relatei antes, meus pais juntaram muito dinheiro nas suas viagens, compraram imóveis em importantes cidades do reino que eles passaram a alugar e são donos de uma das maiores hospedarias da capital real, assim dinheiro para eles não era necessário.

Claro que tal estilo de vida desapagado e simples atraiu a crítica de vários nobres fúteis, que os acusavam de não se comportarem de maneira digna ao seu status e de darem “mal exemplo” ao povo, que logo poderia querer cobrar que todos os nobres fossem como eles. Obviamente eles nunca se importaram com isso.

Por fim, depois de muitos séculos juntos, eles venceram seus receios pessoais e finalmente resolveram ter filhos: primeiro nasceu o meu irmão Karlon e, três anos depois, minha mãe deu à luz a mim e à minha irmã gêmea, Rosa. “

– E o que a vossa mãe falava dos vossos avós maternos, minha jovem? Entendo que não chegastes a conhecê-los, mas o que ela falava deles? Eles eram felizes?

– Sim, segundo o que minha mãe sempre contou a mim e à meus irmãos. Meu avô era o “faz tudo” da vila, trabalhando a maior parte do tempo como marceneiro, mas também ajudava no campo, na colheita de ervas na mata, na pesca de peixes no rio na época de cheia de peixes e até ajudou a organizar uma guarda voluntária que patrulhava a região. Já minha avó era a professora da cidade e trabalhava como parteira e ajudando o único médico da região.

– Como eles faleceram, sabes me dizer?

– Sim, eles morreram defendendo a cidade ao lado da minha mãe. Algum problema aconteceu que levou um grande grupo de feras selvagens atacarem a cidade. Graças aos esforços dos três, ninguém mais se feriu gravemente, mas meus avós acabaram por não resistir aos ferimentos. Minha mãe até hoje se sente culpada, pois, segundo ela, ela tinha poder suficiente para deter os monstros sem que ninguém se ferisse, só lhe faltava a capacidade de usá-lo de maneira correta. E meu pai retruca dizendo que isso tudo era bobagem, que na época, apesar de ela já ter vinte e seis anos, ela ainda era muito inexperiente no uso da magia dela. Que é fácil se culpar séculos depois, com todo esse tempo de experiencia acumulada, mas que ele tem certeza de que ela deu o seu melhor na época.

– Bem, se me permite um aparte, mesmo sem conhecer vossos pais, tendo a concordar com vosso pai, vossa mãe, pelo que relatas, pouca experiência tinha e, a meu ver, do meu ponto de vista, uma elfa de vinte e seis é pouco mais do que uma criança e o que uma criança poderia fazer em tal situação? Quanto aos vossos avós, bem, essa atitude deles nada me surpreende, é bem do feitio deles.

Por um breve momento Jasmin ficou com a impressão de que o Ancião sorrira de maneira melancólica ao proferir a última frase, mas, por fim ela decidiu que era apenas uma impressão, o mesmo elfo que queria obriga-la a fazer algo que ela não queria não seria capaz de tal gesto.

– Acho que é a minha vez de cumprir a minha parte do trato, não?

Antes que o Ancião começasse a contar a história um criado entrou na sala e sussurrou em seu ouvido.

– Infelizmente, mocinha, o dever, por assim dizer, me chama, mas amanhã retornarei para cumprir a minha parte da barganha.

Dito isso, ele partiu junto com o criado e Jasmin retomou o seu tricô.

No dia seguinte, perto do fim da tarde, o Ancião retornou para cumprir a sua parte da barganha. Ele se sentou no sofá e começou a falar:

“Vossos avós, como já deveis saber, se chamavam Elevorn e Isis. Vou começar pela história dela pois, acredito, seja mais longa e mais importante.

Ela era minha sobrinha por parte de pai, filha única do meu irmão do meio e descendia das sacerdotisas do bosque por linhagem materna.

E aqui me cabe fazer um pequeno aparte: quando eu disse que era curioso teres um irmão é porque, tradicionalmente, as mulheres da descendência das sacerdotisas do bosque só tem filhas mulheres. O fato de teres um irmão significa que o sangue de vosso pai tem muita força, para quebrar esse ciclo.

Isis acabou por ser filha única pois meu irmão veio a falecer de maneira súbita e minha cunhada se recusou a contrair novo matrimônio alegando que ela possuía irmãs e sobrinhas e, assim, o fato de a Isis ser filha única não punha a linha sucessória das sacerdotisas em risco. Embora eu deva dizer que nenhuma delas possuía o potencial mágico da vossa avó ou mesmo vosso, minha jovem, por isso que acredito que será o melhor para o Bosque que assumas o cargo de sacerdotisa. Mas não vou insistir no assunto, não agora, não quebrarei nosso acordo.

Enfim, retomando a nossa história, por quinze anos Isis foi preparada para ser a nossa nova sacerdotisa. Recebeu aulas de etiqueta, de música, de magia e de história até que um dia, algo mudou na vida dela, ou melhor, alguém.

Me sugeristes a sair mais, minha jovem, só que, no passado, eu saia, acredite. Era o responsável pelas relações do Bosque com as outras nações, quando ainda não era o Ancião Mor e sim apenas o mais jovem membro do conselho dos anciões.

Numa das minhas viagens, já retornando para cá, encontrei uma pequena carroça vira na estrada. Nesta havia um casal de elfos, mortos, com marcas no corpo que demonstravam ter sido mortos por alguma fera selvagem e um jovem elfo de 15 anos e cabelos castanho escuros, gravemente ferido, mas que lutava pela vida.

Admirado com tal apego à vida, com tal vontade de viver, decidi cuidar dele. O levei para a vila mais próxima, nos hospedei numa pousada, usei os melhores remédios que tinha e todos os meus conhecimentos e ele sobreviveu. Ao acordar finalmente bem ele me contou que se chamava Elevorn, que seus pais eram caixeiros viajantes e que eles eram toda a família que ele tinha no mundo.

Fiquei com pena do rapaz, naquilo que talvez tenha sido o meu maior erro, e o trouxe comigo para o Bosque. Eu nunca me casara e nem tampouco tivera filhos e, rapidamente, Elevorn se tornou o filho que eu nunca imaginara ter. Aprendia tudo com rapidez e se mostrava muito hábil com as mãos e muito criativo.

Ele e Isis se aproximaram, o que era normal, afinal tinham a mesma idade e agora eram “primos”. O que começou com uma amizade, em dez anos se tornou amor e eles vieram pedir a minha autorização e a autorização da minha cunhada para se casarem e nós demos. Elevorn havia se tornado alguém da família, era alguém de confiança e tinha um grande potencial mágico. Eu tinha esperança de que o fruto daquela união viesse a se tornar a maior sacerdotisa de todos os tempos, uma maga de grande poder.

Mal sabia eu que Elevorn contaminara a mente não só de Isis como de outros jovens com as histórias de suas viagens, de tudo o que ele vira e vivera nos quinze anos em que ele viajou com seus pais pelo continente. E logo todos eles, inclusive Isis, desejavam viajar, conhecer o mundo, viver aventuras, essas bobagens que os jovens falam. Alguns foram dissuadidos por suas famílias, mas Elevorn e Isis se mostravam irredutíveis, com ela cada vez menos propensa a ficar no bosque e se tornar a nova sacerdotisa.

Minha cunhada deu o seu aval e, mesmo eu, que já assumira como o Ancião Mor, sendo o mais novo a assumir o tal cargo, nada podia fazer para impedi-los, eram adultos, casados e a sacerdotisa libertara Isis de suas obrigações. Eu ainda ameacei bani-los, torná-los proscritos, “Arin” no nosso idioma e nem isso os impediu. Pelo contrário, ainda tiveram a coragem de adotar “Arin” como seu sobrenome.

Numa triste tarde de outono eles partiram e nunca mais voltaram. Por muito tempo Isis ainda escreveu à mãe, mas um dia as cartas pararam de chegar e hoje, minha jovem, graças à ti, eu sei porque pararam.”

– E esta foi a história de vosso avós aqui no Bosque, minha jovem. Espero ter cumprido a minha parte da barganha.

– Com certeza cumpriu.

– Ótimo, agora que eu já cumpri a minha parte e não corro risco de quebrar a minha palavra: amanhã acontecerá a cerimônia de vossa nomeação como nova sacerdotisa, gostes ou não. Tenha uma boa noite de sono e amanhã, quando eu vier lhe buscar, espero vê-la vestida com o vestido cerimonial.

Sem dar tempo para Jasmin responder, o idoso elfo levantou-se do sofá e partiu.

No dia seguinte, como prometido, ele veio buscá-la para a cerimônia, mas, em vez do vestido, Jasmin trajava as roupas com que chegara ao bosque, pronta para partir.

– O que estás a vestir? Não escutastes o que eu lhes disse ontem, minha jovem? Achas o que? Que eu estava de brincadeira?

– Não, nunca achei que estivesses de brincadeira e o que eu estou vestindo, Ancião, são minhas roupas de viagem, pois minha família chegou para me buscar.

– Ainda insistes com essa fantasia?

– Insisto porque não é fantasia, eles já estão junto do bosque, minha irmã me avisou por telepatia.

Antes que o velho elfo conseguisse falar mais alguma coisa, um guarda entrou esbaforido no cômodo.

– Grande Ancião, as duas jovens que estiveram aqui outro dia retornaram acompanhadas de mais quatro pessoas.

– Quatro pessoas? Como são essas pessoas? – perguntou o ancião.

– Deixa eu adivinhar quem são essas quatro pessoas – disse Jasmin, se intrometendo na conversa. – Um meio elfo de cabelos escuros, grande, forte, com quase uma milha real de altura, um elfo loiro curiosamente barbado com braços grossos como o de um anão, uma dama élfica de cabelos cobreados com cara de que vai tacar fogo em você se não sair do caminho dela e uma elfa loira com ar tranquilo e olhos azuis profundos?

– Perfeitamente, senhorita. Nós seguimos as vossas ordens, Ancião, e negamos a entrada deles, mas agora eles estão tentando quebrar o nosso campo de força. O elfo e o meio elfo estão a arremessar pedras grandes no campo de força enquanto as outras duas damas estão a jogar magias no mesmo ponto. Curiosamente as duas jovens que estiveram aqui no outro dia estão apenas observando a cena.

– Quatro pessoas, quatro pessoas! Este é o total de pessoas que a sua família mandou para te resgatar? Somente quatro? Não conseguiram mobilizar mais? Pelo jeito o apreço deles por ti não é tão grande, minha jovem.

– Pelo contrário, vossa excelência, eles poderiam mobilizar um pelotão se fosse necessário, mas apenas essas quatro pessoas são mais do que suficientes para tão missão.

– Por curiosidade, quem são tais pessoas em quem depositais tanta confiança?

– Os elfos loiros são meus pais: Siegfried e Liliana e os outros dois são meus tios, Lukhz, meio irmão do meu pai e Ardriel, princesa herdeira do Reino de Arlon.

– Entendo então o tal motivo de confiança, mas lhe garanto que ela será em vã.

– Com todo o respeito, grande ancião, desta vez vós irás ficar surpreso, verás que eles são mais do que capazes de quebrar o vosso campo protetor.

– Se tem tantas confiança assim, minha jovem, que tal fazermos uma pequena aposta?

– Uma aposta?

– Sim uma aposta: se eles conseguirem quebrar o campo e entrar na vila, eu mesmo, pessoalmente, à conduzirei até eles e estarás livre para ir. Agora, se eles fracassarem, ficarás, se tornarás nossa sacerdotisa e te casarás com quem eu escolher. Aceitas?

– Claro, com o maior prazer.

Nem um minuto se passara que Jasmin pronunciara tais palavras e um som similar à de uma grande vidraça se quebrando foi escutado em todo o bosque. Aquilo que se julgava impossível acontecera: o grande campo protetor do Bosque fora quebrado.

Os sucessivos ataques mágicos e físicos concentrados no mesmo lugar fizeram surgir uma pequena rachadura no campo. Lukhz usou uma das suas espadas para aumentar o corte. Liliana caminhou até o corte que o cunhado ampliara, colocou suas delicadas e alvas mãos nas bordas do corte e uma intensa luz verde começou a brotar destas. Essa luz foi se espalhando por todo o domo protetor do bosque como múltiplas rachaduras e esse acabou de explodir em mil pedacinhos.

Mostrando ao menos ter palavra, o Ancião, junto com alguns guardas e outros membros do conselho, escoltou Jasmin até o encontro de sua família. O encontro se na estrada de tijolos amarelados, quase na entrada da clareira principal.

Jasmin correu para os braços da irmã e da prima, que a abraçaram de maneira calorosa enquanto perguntavam se tudo havia corrido bem, no que ela respondeu que sim. A jovem abriu a sua bolsa e entregou o cachecol verde para a sua irmã e o azul para a sua prima.

Ao mesmo ocorria um encontro tenso entre o Ancião e os pais e tios de Jasmin.

– Liliana, eu sei que a filha é sua, mas me permites falar primeiro? – perguntou Ardriel, ignorando totalmente a existência da comitiva do Bosque.

– Com prazer, primeiro os assuntos oficiais, depois os pessoais.

Ardriel caminhou até o Ancião, fez uma pequena mesura e se apresentou:

– Para aqueles que não me conhecem, sou Ardriel Fornorimar Bianchi, princesa dos Reinos de Arlon e Erdan, e herdeira do trono que comanda todas as terras que circundam vosso bosque.

Ela esperou para ver se alguém falaria algo mais e, como ninguém se pronunciou, a elfa continuou a falar:

– Caro Ancião Mor, é em meu nome e no nome de meu tio, o Rei Tiron de Arlon que eu digo que estou muito descontente com vossa atitude. É graças à benevolência de meu tio que vós mantivesses a vossa independência. Por centenas e centenas de vezes o meu tio ouviu nobres clamando que deveríamos anexar-vos, que vossa biblioteca é preciosa demais para ser mantida na mãos de xenófobos isolacionistas, que deveria estar alcance de todos, para benefício de todos os povos livres do continente. E meu tio os ignorou, respeitando o acordo firmado entre seus antepassados e o grande rei Antigon embora, legalmente, meu tio não seja obrigado a respeitar esse. Então, o mínimo que esperamos de vossa pessoa é gratidão. Espero que, da próxima vez, quando enviarmos representantes oficiais do nosso reino, que estes sejam recebidos com cortesia e educação.

– E se eu não o fizer, princesa? Afinal, não sou obrigado a receber no meu bosque quem eu não quero receber, não é mesmo?

– Fizestes o que fizestes, pusestes o meu reino em risco por causa de costumes bestas e ainda me provocas? Não sei se lhe sobra coragem ou senilidade, mas responderei vossa pergunta: não tereis mais um bosque para chamar de vosso. Nós finalmente aceitaremos a demanda dos nobres e anexaremos esse bosque ao nosso reino e eu farei questão de comandar as tropas militares. Fui clara ou, como se diz na terra natal do meu marido, preciso desenhar?

– Não, acho que vossa alteza deixou vosso ponto bem claro.

– Ótimo, se tem algo que me irrita quase tanto quanto gente prepotente é ter que me repetir.

A princesa se afastou, mas, antes que o Ancião e os demais ali presentes conseguissem respirar aliviados, uma aura mística terrível se fez sentir. Liliana, banhada por uma luz verde que ia dos pés à cabeça, se aproximou do ancião, com um ar sério e, olhando firme nos olhos dele, disse:

– Caro “tio”, saiba que meus falecidos pais me deram educação e me ensinaram a respeitar os mais velhos e, por isso, desta vez, vou relevar o que fizestes com a minha filha. Mas caso o senhor tente novamente capturar alguma das minhas crianças e obrigá-las a fazer qualquer coisa que elas não queiram o senhor terá que aguentar toda a minha fúria e, quando eu acabar de lidar contigo, irão enterrá-lo usando um dedal como caixão pois o que sobrará de ti não será o suficiente para encher um. Fui clara, não é mesmo?

O velho elfo não conseguiu responder. Suor frio tomava conta de sua testa e o conteúdo de sua bexiga escorria por suas pernas. Ele nunca tivera tanto medo em sua longa vida quanto naquele momento.

Os agora sete familiares se reuniram e partiram para casa. No meio do caminho acabaram cruzando com o guarda que chamara Rosa de rameira, para o azar deste pois a jovem não havia esquecido a ofensa e contou para o seu pai o que havia acontecido. Sieg pegou o infeliz guarda pelo pescoço e avisou que se o guarda cometesse novamente o deslize de chamar qualquer mulher da família dele de rameira, ele pessoalmente arrancaria a língua do guarda com as mãos nuas.

Fim da Parte 4

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