A Sacerdotisa

Liliana colhia flores para fazer remédios na sua horta com a ajuda de sua filha Jasmin.

– Ainda chateada com a gente pela maneira como te resgatamos?

– Não estou chateada, mãe, eu nunca fiquei. Talvez um pouco frustrada. Isso, frustrada. Eu tive o maior trabalho para mostrar para o chato do ancião que nossa família não era um bando de bárbaros selvagens e aí? Papai e o tio arrombam o campo de força como dois homens da caverna e a senhora ameaça cremá-lo e colocá-lo dentro de um dedal. Atitude que eu esperaria da tia Ardriel e não da senhora. Aliás, a tia foi a única que se comportou de maneira educada. Dura, mas educada. O que me surpreendeu, diga-se de passagem.

– Normal, afinal quem estava ali era a “Princesa Ardriel Fornorimar Bianchi, herdeira das coroas de Arlon e Erdan” e não a vossa tia Ardriel. Tens que reconhecer que vossa tia sabe ser diplomática quando precisa.

– Soube ser diplomática porque era eu. Se fosse um dos meus primos, um dos filhos dela, duvido que ela tivesse sido diplomática.

– Fato, filha, fato – concordou Liliana, rindo. – Mas duvido que tenhamos notícias do bosque tão cedo.

Mãe e filha terminaram a sua tarefa e voltaram para casa.

Mais tarde, a família toda apreciava um chá, enquanto conversavam sobre o seu dia, quando escutaram uma carruagem parar na frente da casa.

Liliana pareceu ficar um pouco abalada com isso e toda sua família notou.

– Mãe? Algo de errado? – perguntou Rosa.

– Querida? Está tudo bem? – perguntou Sieg.

A elfa ignorou as perguntas de sua filha e de seu marido e se dirigiu até a frente da casa, sendo seguida por toda sua família.

Parada na frente da casa estava uma carruagem branca arredondada que mais parecia uma grande abóbora branca, puxada por dois cavalos marrons. Guiando esta, estavam dois jovens elfos com os trajes dos soldados do bosque. Sieg, ao reconhecer os trajes, soltou um palavrão baixinho e se preparou para se adiantar, mas foi contido por um gesto de sua esposa.

A porta da carruagem se abriu. Primeiro desceu um jovem pajem, que vestia uma roupa em tons de verde claro. O rapaz trazia consigo uma escada. Posicionou esta na frente da entrada e estendeu a mão para ajudar a descida de uma segunda pessoa que se encontrava ainda dentro do transporte.

A pessoa que desceu auxiliada pelo rapaz era uma elfa, claramente idosa, com algumas rugas no rosto, um longo cabelo amarelo palha solto nas costas e que trajava uma longa túnica branca, similar à do Ancião Mor, mas com detalhes em cinza e não em verde e dourado.

Ao pôr os olhos em Liliana, a anciã deixou de lado qualquer atitude formal que poderia ter e correu até esta, abraçando-a de maneira intensa, para surpresa de todos, inclusive daqueles que haviam viajado até lá com ela.

– Sois Liliana, certo? Sois a cara de vossa mãe!

– E vós deveis ser Luanara, a sumo sacerdotisa do Bosque? Não posso dizer que a reconheci pois nunca a vi, mas sua aura mágica lembra muito a da minha falecida mãe.

– Todos falam isso.

– Imagino que tenhas algo importante a dizer para teres vindo até aqui, então, que tal entrarmos para conversarmos na minha casa? Não quero que penses que meus pais não me deram educação.

Todos tomaram o rumo de casa. Os servos que haviam viajado com Luanara foram acomodados numa antessala e a eles foi oferecido água, suco e alguns aperitivos, visando recobrar suas forças diante de tal viagem.

Luanara, por sua vez, foi conduzida para a mesma sala onde Liliana se encontrava com sua família no momento em que ela chegara. A ela foi oferecido o mesmo chá e os mesmos biscoitos que eles estavam a degustar quando foram interrompidos pela súbita chegada da carruagem.

– Tanto o chá quanto os biscoitos estão excelentes, inacreditável que sejam simples produtos caseiros – comentou a anciã élfica, que agora se encontrava instalada numa confortável poltrona de couro, couro este que se encontrava um pouco gasto devido à passagem do tempo, mas nada que tornasse a poltrona menos agradável para quem a usava.

– Tá, agradecemos os elogios, mas duvido que a senhora tenha vindo até aqui para elogiar o chá preparado pela minha mãe e os biscoitos assados pelo meu pai – retrucou Rosa, que, de todos, era a que se encontrava com o ar mais sério, o que contrastava com o seu usual jeito descontraído de levar as coisas.

– Rosa, não é assim que tratamos as visitas nesta casa, sejam elas quem forem – falou Sieg, num tom sério, para a filha.

– Deves desculpar a minha filha – completou Liliana. – Não foi assim que a educamos e ela costuma ser mais simpática do que isso.

– Não se preocupeis, minha neta, diante da bagunça que o Elford fez, a falta de simpatia dela é mais do que justificável.

– Elford? – perguntou Rosa.

– Sim, Elford, o Ancião Mor do Bosque. Não me digas que ele se apresentou apenas como o “Ancião Mor do Bosque”?

– Exatamente, senhora, ele em momento algum disse o nome dele, nem durante as nossas conversas durante o meu período de “cativeiro” por lá – respondeu Jasmin.

– Aquele bode velho teimoso está ficando cada vez mais pedante com a idade. O mínimo que se espera é que a pessoa se apresente dizendo o vosso nome e não apenas o título do cargo que ocupa. E já que tocastes no assunto, vim me desculpar por toda a bagunça que ele causou, aliás, sem o meu consentimento e permissão.

– Consentimento e permissão? – reagiu, espantada Jasmin. – E ele precisava disso?

– Sim, boa pergunta, irmã, afinal ele ficou o tempo todo falando em “meu Bosque”, “meu território” e outras bobagens pedantes – completou Rosa.

– “Bobagens pedantes” é uma ótima definição. Sim, ele deveria ter me consultado, afinal, pelo jeito vós não sabeis, mas o Bosque é uma sociedade matriarcal. Eu, como sumo sacerdotisa do Bosque, sou a governante mor de lá, o conselho dos Anciões só existe para me servir e me auxiliar nas tarefas do dia a dia.

– Por isso que os meus pais conseguiram ir embora do Bosque, certo? Porque destes a vossa autorização e ele nada poderia fazer contra esta.

– Exatamente minha neta, exatamente. E mais uma vez, venho a vós todos pedir desculpa por tudo. Depois do falecimento do meu marido, eu passei a me dedicar somente aos estudos e à minha filha, deixando o comando do Bosque para o Conselho. E, depois da partida da minha Ísis, aí mesmo que eu me tranquei nos estudos e na tarefa de proteger o meu povo, sem saber o mal que estava fazendo ao permitir que os anciões isolassem estes do mundo de vez. Mas meus olhos estão abertos como nunca estiveram nos últimos séculos e me esforçarei para corrigir o que ainda deve ser corrigido. Deixarei vossa prima, que escolhi como minha sucessora, as filhas desta e as demais sacerdotisas do Bosque responsáveis por manter o campo protetor e assumirei mais diretamente meu dever de governante. Abrirei nossas fronteiras para aqueles que desejam comercializar conosco e para aqueles que desejam estudar em nossa biblioteca e permitirei que os nossos jovens conheçam mais este mundo.

– Fico feliz de ouvir isso da senhora e tenho certeza de que meus pais igualmente estariam felizes ao ouvir isto – comentou Liliana – Quanto ao incidente com a minha filha, bem, de minha parte está tudo resolvido. Acredito em ti quando dizes que não terias permitido que isso tivesse acontecido se tivesses sido consultada e já tive uma conversa apropriada com o responsável.

– Mais do que apropriada – sorriu a anciã – e, acredite em mim, Elford não chegara perto da vossa família nunca mais. Agora, se me dão licença, devo retomar minha viagem, pretendo ir conversar com os reis de Arlon para estabelecer novos laços diplomáticos.

– Minha avó, não podeis ficar mais alguns dias? – disse Liliana, abrindo um sorriso maternal, tão conhecido pela sua família e amigos. – Creio que falo por todos aqui quando digo que adoraríamos conversar mais com a senhora, conhecer-lhe melhor.

– Eu poderia? – retrucou a senhora, com olhos marejados. – Eu não atrapalharia a vossa rotina? Mas eu tenho a minha reunião com os reis…

– Atrapalhar? Nunca. E, como disse a minha esposa, adoraríamos ter a oportunidade de conhecer melhor a senhora – insistiu Sieg. – Quanto aos reis, meus tios, creio que posso resolver isso facilmente então vossa reunião com eles não seria um empecilho para vossa estada aqui.

– Se me garantes que podes resolver isso de maneira simples, então eu aceito, adoraria conhecer melhor o elfo que presenteou a minha neta com lindos filhos e que conseguiu fazer que ela fosse a primeira mulher de nossa linhagem a ter um filho homem.

Luanara ficou mais quinze dias hospedada na casa de Sieg e Liliana e acabou nunca indo à Arlon ver os reis, pois estes acabaram por ir até Swordia. E foi naquela mesma sala onde ela comera biscoitos e tomará chá com sua neta e a família dela que os “Acordos de Swordia”, o tratado estabelecendo uma nova era de cooperação entre o Bosque e o Reino de Arlon foi assinado.

Ela chegou naquela vila como uma estranha, mas partiu de volta para o Bosque como uma avó e bisavó orgulhosa da sua família e orgulhosa de ter seguido o seu coração no passado, quando permitiu que a sua única filha saísse a viajar pelo mundo movida pelo amor.

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